“A alegoria da caverna de Platão talvez nos ajude a perceber a
complexa opacidade do tentacular mundo financeiro contemporâneo.
Um recente estudo do FSB (Financial Stability Board) - uma
organização estabelecida em abril de 2009 por alguns dos maiores bancos
centrais do planeta - revela a desmesura das instituições que se dedicam a
operações de crédito semelhantes à da banca regular, só que sem se submeterem
às mesmas normas de regulação e supervisão da banca formal.
Na verdade, calcula-se que atualmente a shadow banking [instituições
financeiras não bancárias e cuja atividade se escapa à regulação] corresponda a 67 biliões de dólares (111% do
PIB mundial!), uma brutal subida numa década, a partir dos 26 biliões de 2002.
A crise financeira de 2008, causou apenas um pequeno atrito, logo corrigido por
novas subidas. Mais de um quarto de todas as operações de crédito pertence a
estas entidades, cujo peso é sobretudo relevante nos EUA (23 biliões), na Zona
Euro (22 triliões) e no Reino Unido (9 biliões).
Para os milhões de desempregados da Zona Euro, para os milhares de
empresários portugueses, irlandeses e espanhóis que não encontram crédito para
os seus negócios à luz do dia, que iriam criar emprego e pagar IRC, este oceano
de liquidez, de uma diáfana legalidade, não deixará de ser uma espécie de
dolorosa metáfora acerca de quem manda no mundo. Massas de capital desta
dimensão, flutuando quase sem barreiras, estabelecendo conexões portadoras de
risco sistémico para a economia real, constituem uma espécie de híper-leviatã
financeiro que seduz ou devora os tímidos poderes políticos nacionais.
Compromete a sua eficácia. Compra a alma de muitos dos seus atores. Faz da
integridade das instituições, às vezes, uma mera caricatura.
Platão já nos prevenira, há 2500 anos. Olhar a verdade de frente
faz doer os olhos.”
(Cf. “Opinião”, in Diário de
Notícias, 29 de Novembro de 2012)
Adenda:
A FSB inclui também, para além dos representantes dos bancos centrais
de 12 nações mais industrializadas (EUA, Japão, Alemanha, Inglaterra, etc.),
ministros das finanças e reguladores.
O seupapel consiste em monitorizar e produzir recomendações que
contribuam para a regulação financeira internacional.
Com estes dados, oriundos de quem sabe do que fala, é necessário avançar
para uma decisão vinculativa, tomada no âmbito da Nações Unidas, que estabeleça
um norma proibitiva das práticas do shadow banking, por um lado, e que faça a
taxação das transações financeiras internacionais, revertendo esse produto a
favor da erradicação da pobreza e da ajuda ao desenvolvimento.
A editorial Temas e Debates publicou este ano a obra Pensar, Depressa e Devagar, de Daniel
Kahneman. Este autor foi laureado em 2002 com o Prémio Nobel da Economia, mas a
sua formação é na área da psicologia cognitiva, centrando-se no campo do juízo
e da tomada de decisão.
Por esta razão, a obra é importante para um economista
porque a teoria da decisão aqui exposta, designada “teoria da prospetiva” (“prospect
theory”) vem falsificar substancialmente
os pressupostos da teoria económica hegemónica, de raiz neoclássica.
A teoria considera que
há dois sistemas de pensamento, que agem na tomada de decisão: o sistema 1, rápido,
automático, associativo e praticamente fora de controlo; e o sistema 2, lento, controlável,
de encadeamento serial e passível de regulação.
Em muitas situações (por
ex., a pressão do tempo para a tomada da decisão), o sistema 2 não é ativado,
ou se é, sofre modificações derivadas de informações que se introduzem no
sistema 1.
A partir deste quadro, a
tomada de decisão deixa de obedecer à conceção determinista imanente ao modelo teleológico
em que funciona a teoria da ação da escola neoclássica da economia. Por isso,
na explicação da decisão tem de ser tomada em linha de conta as componentes da
subjetividade humana (crenças, valores, experiência, memória).
A teoria
da ação da escola neoclássica de economia (Menger, Pareto, Walras, Hicks, Allen,
Samuelson) tem sido o paradigma de pensamento, na macro como na microeconomia. Os
dois conceitos básicos a partir dos quais se estruturou a teoria são: utilidade
e racionalidade.
Ora,
definir a ação a partir da de utilidade que se pretende alcançar é desde logo
optar por um modelo explicativo daquela de tipo teleológico e
consequencialista.
O
conceito de utilidade é interpretado naquela escola em termos de índice de
preferências e não em termos de satisfação orientada à obtenção do prazer
(posição hedonista de Bentham), minimizando a dor.
A preferência na teoria neoclássica é descrita em
função de três critérios: a atitude mental do agente em face das alternativas;
o desejo de maximização da satisfação a alcançar; a dimensão pessoal, que torna
impossível recorrer a qualquer explicação racional, baseada numa conformação
comum do pensamento dos agentes ou numa normatividade socialmente determinada.
O conceito de racionalidade não pode, pelo que se
disse da “a-racionalidade” das preferências individuais, ser definido
teleologicamente. Por isso, a racionalidade passa a ser definida não em termos
substantivos (como a justificação dos fins a alcançar) mas em termos
instrumentais.
Assim, a
racionalidade na teoria neoclássica consiste na ordenação coerente, por parte
do agente, tanto das várias alternativas da sua ação como dos meios de que
dispõe para alcançar cada uma delas, como a relação de cada meio com as
finalidades que com ele se alcançam.
É a racionalidade do agente que lhe permite: selecionar
e deliberar quanto aos meios adequados e ao seu uso eficiente; selecionar os
fins que se podem alcançar em função dos meios disponíveis; derivar os fins da
escolha dos meios a utilizar para a sua consecução.
Este modelo de racionalidade do agente da teoria neoclássica não resiste
à abordagem científica de Daniel Kahneman e de Amos Tversky, pois eles comprovaram
experimentalmente que, nas situações de escolha, não se inclui a avaliação dos
acontecimentos incertos de acordo com as leis da probabilidade, nem tampouco se
segue a teoria da maximização da utilidade esperada.
Tal facto deve-se ao facto de as pessoas terem uma compreensão
distorcida dos fenómenos probabilísticos, avaliando a situação não em função da
variável da utilidade esperada (segundo o modelo finalista da teoria da ação)
mas em função da experiência de se ganhar ou perder.
Tomemos uma situação
específica de incerteza: numa série de ganhos reduzidos mas certos e de ganhos
elevados mas incertos, preferimos normalmente não arriscar e optar pelos ganhos
reduzidos mas seguros; e numa série de perdas, optamos por arriscar, mesmo com
uma pequena probabilidade, quando enfrentamos perdas elevadas. Ocorreu aqui o que
Kahneman designou por “reversão de preferências”: os ganhos tornam os agentes
mais conservadores e as perdas mais ousados.
Este último aspeto entra mesmo em contradição com a ideia de que estamos dispostos a sacrificar o consumo de hoje,
acumulando capital, para beneficiar mais tarde dos ganhos da nossa ação.
Aplicando a “Teoria
da Prospetiva” ao campo das decisões económicas, teremos:
a)O modo como se
apresenta um problema arrasta o tipo de decisão que o agente económica venha a
tomar: investir, financiar-se etc., ou não;
b)O valor do desprazer
associado à perda é superior ao prazer associado ao ganho;
c)O investidor arrisca
mais quando perde e quando ganha arrisca menos.
A falsificação de uma teoria pode implicar tanto a sua substituição por
outra mais adequada como a sua reformulação. Trabalho que cabe à investigação
nas áreas da ciência económica. O sistema capitalista enquanto tal, em alguns
dos seus fundamentos, também abre algumas brechas.
Mas para já, há consequências a tirar do alcance desta inovação no
domínio da economia: a “teoria do prospecto” de Kahneman e de Tversky deve ser
usada como ferramenta estratégica das políticas económicas do Governo, na
medida em que através dela o valor da incerteza é ponderado no âmbito
previsional.
Dando continuidade ao
referido em posts anteriores sobre o tema, Eduardo Prado Coelho começou por
definir o “segundo corpo” do seguinte modo: “é o corpo como superfície, como
margem de ação”.
A explicitação do
sentido do enunciado foi feita a partir da figura “O corpo do Outro”, que se
inclui no livro de Roland BarthesFragmentos
de um discurso amoroso. O termo “figura” aqui usada toma o sentido, de
acordo com Barthes, do próprio discurso que o sujeito apaixonado faz, na
primeira pessoa, da sua experiência libidinal (que abrange o plano mental e o
emocional) quando ele se encontra na presença do amado adormecido.
E procedeu à leitura de
excertos da “figura” selecionada deFragmentos
de um discurso Amoroso:
“O seu corpo estava dividido
– de um lado o próprio corpo – a pele, os olhos –terno caloroso, e do outro,
a voz, breve, moderada, sujeita a momentos de afastamento, (…)”;
“Assalta-me, por
vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (…) como se
quisesse ver o que está lá dentro (…) de modo frio e surpreso (…) se o corpo
que examino sai da sua inércia, (…) o meu desejo se modifica; se, por exemplo,
vejo outro pensar, o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário,
regresso à sua Imagem, a um Todo: amo novamente.”
É pelo olhar do corpo (a
pele, os olhos) que se atinge a “superfície”, a “margem de ação”, lexemas
usados por Prado Coelho na sua definição inicial. Em sentido conjuntivo se
devem interpretar estes lexemas.
O corpo é uma “superfície”,
uma pele, algo visível que abre o eu ao mundo como horizonte das suas
possibilidades (Winnicott fala da pele como “membrana do eu” e Didier Anzieu
fala de um “eu-pele”).
Mas é também uma “margem de
ação”: assim como a margem de um rio sofre alterações em função da força do
caudal, a metáfora usada sugere, com pertinência, a condição paradoxal do
corpo: as realizações do corpo (sensoriais, emocionais, discursivas), que
configuram o horizonte das suas significações, reenviam sempre para o desejo.
Mas a natureza inconsciente deste, que excede toda a significação temática,
como um significante flutuante, nunca tem completo preenchimento nas suas
realizações ou nas suas significações conscientes.
Por isso, o desejo aflora à
margem do corpo do outro de vários modos, dirigindo o olhar para zonas de
investimento libidinal, e, num ato de pensamento, quer fazendo-o descer até às
profundezas daquele. Mas, e este ponto é relevante, só quando o corpo do outro
se faz voz, se faz fala, o outro do meu desejo – a minha Imagem – me faz nascer
de novo o amor.
Se é no discurso que apaixonado
diz o seu amor, então a literatura torna-se um espaço próprio em que ele pode
ser enunciado, segundo formas e modos diferenciados.
Toda a literatura nasce
assim dessa ficção maior que é o amor: descrevendo as suas incertezas, os seus
obstáculos, os seus movimentos de aproximação e de separação, as suas
possibilidades ou impossibilidades, a sua morte inevitável ou a sua
transfiguração para além do tempo, a sua capacidade de abrir a porta da
esperança para transformar o mundo, enfim.
Se alguém acreditar no corpo
de Deus, que lhe vem falar ao coração, então também este poderá dizer, sempre
de novo, eu amo-te. Mas esta consequência excede o âmbito do que foi dito na
conferência, é apenas o desejo deste escriba.
Prado Coelho articula assim
o seu comentário sobre esta “figura” de Barthes, colocando-se no mesmo
horizonte de interpretação deste, isto é, a partir da interpretação de Lacan do
pensamento de Freud.
Neste quadro, demarca-se uma
perspetiva do corpo completamente diferente da fenomenológica (que expus na
Parte II deste resumo, em post anterior). Diferenças que levaram certos autores
a procurarem encontrar pontos de complementaridade entre a psicanálise e
a fenomenologia (Merleau-Ponty, Karl Jaspers, Binswanger).
Mas estas tentativas
chegaram a um beco sem saída: a incapacidade da fenomenologia descrever o que
se passa no âmbito das motivações inconscientes obrigou a continua a fragmentar
a compreensão do corpo a partir do dualismo cartesiano da consciência e do
corpo médico. Parece ser difícil encontrar essa “terceira linguagem”, além ou
aquém do dissenso onde ainda nos encontramos.
A Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra promoveu a Conferência "Valores humanos, justiça e política económica", em 14 de Março de 2011, sob a égide e com a presença de Amartya Sen. Para enquadrar o pensamento deste autor sobre a justiça, vou agora, como prometi, fazer um resumo da obra recém editada A ideia de Justiça. Para além do prefácio e da
introdução, a obra estrutura-se em quatro partes:
- 1ª As exigências da
Justiça; 2ª: Formas de Argumentação Racional; 3ª: Os Materiais da
Justiça; 4ª: Argumentação Pública e Democracia.
Em termos estruturais, este
livro tem como eixo central a oposição, que Sen identifica no iluminismo, entre
éticas transcendentais (Rousseau, Kant e Rawls) e comparativas (Adam Smith,
Condorcet, S. Mill e Marx)
Na complexidade das
sociedades modernas, coexistem múltiplos interesses e diferentes posicionamentos
morais, todos legítimos. A conflitualidade gerada pela pluralidade conduziu ,
por parte de pensadores de inspiração iluminista, a procurarem definir
critérios de justiça tendo por base a argumentação racional no espaço público.
Neste espaço da teoria,
surgem duas correntes:
- a do “institucionalismo
ético” (que prolonga a orientação das éticas transcendentais do iluminismo, sendo Rawls o autor mais representativo), a corrente dominante, considera que a busca de uma sociedade justa
se alcança por “enfoque nos arranjos sociais”, servindo a teoria da
sociedade justa como norma e medida do grau de aproximação da sociedade real;
- a da “comparação focada em
realizações” (prolonga as éticas comparativas iluministas, na qual Sen se filia), não crendo na ficção sociedades
perfeitas, procura critérios de orientação das escolhas capazes de ampliar a justiça
social e ao mesmo tempo minimizar as injustiças intoleráveis.
Sen reafirma a sua
vinculação ao projeto emancipatório iluminista,reconhecendo ter colhido também
inspiração nas ideias do reformador Akbar, imperador muçulmano que governou a
Índia na década de 1590, o qual, num quadro de grande conflitualidade
religiosa, logrou, pela procura do mais racional, vencer o dogmatismo da
tradição e instituir o princípio da liberdade religiosa e do tratamento
igualitário de cada religião.
Entrando numa analise de
conteúdo, as partes I e II do livro, que se inspiram do enfoque comparativo dos
autores referidos, visam criar as condições epistemológicas para a construção
de um modelo de justiça que articule os direitos humanos universais com a
humanidade na sua pluralidade.
Sen parte da ideia da
“justiça como equidade” proposta pela teoria neocontratualista de Rawls,
aceitando-a como princípio.
De seguida, procede a uma
análise dos pressupostos e da metodologia seguida por Rawls de modo determinar
os limites e improcedências da teoria.
A natureza contratual deste
modelo, em que Rawls considera que na “posição original” todas as pessoas,
tomadas individualmente, escolhem os mesmos princípios de justiça, não tem
validade porque pode ser refutado em determinadas situações.
Esta afirmação pressupõe que
uma sociedade é uma entidade discreta e autosuficiente, fechada sobre si
própria, obliterando que cada sociedade se encontra numa relação de
interdependência com as demais, de modo que as decisões de cada uma podem
interferir (muitas vezes negativamente) na vida das outras.
A consequência da dicotomia
cavada entre o interior e o exterior de uma sociedade deixa os que estão de
fora no momento do contrato – estrangeiros, gerações futuras, natureza –
privados de fazer valer os seus interesses e direitos.
Em relação à pretensão de
Rawls de edificar uma teoria transcendental (universal e necessária), Sen questiona
a sua possibilidade e a sua necessidade. Pois a diversidade das sociedades,
diferenciadas pela história e pela cultura, entra em choque com a asserção de
que só há um tipo de sociedade justa – a liberal, baseada nos dois princípios
de justiça que propõe.
Em relação à importância
atribuída por Rawls à criação de instituições justas, como condição para
existirem cidadãos justos, Sen contrapõe, recorrendo à literatura
sapiencial sânscrita bem como à tradição europeia comunitarista (Adam Smith,
Marx …), que as realizações sociais não são apenas um produto das instituições
justas, mas de muitos outros fatores culturais, históricos e sociais.
Na III Parte, “Os Materiais
da Justiça”, Sen, ancorado no terreno da análise económica clássica, demonstra
a insuficiência da base de informação da aproximação utilitarista, que se
baseia na análise custo/benefício, ao tema da justiça
O que torna necessário
proceder a um alargamento daquela base de informação, propondo Sen um critério
de pensamento e de avaliação que designa por “aproximação pelas capacidades”
("capability approach").
As “capacidades humanas” dos
agentes variam em função da sua condição social (classe, etnia, nível de
educação, …) e das suas necessidades.
Deste modo, a noção de
bem-estar, que é a pedra de toque da teoria neoclássica, não pode ser definida
in abstrato, mas tem de incluir o conjunto das variáveis em jogo, tomando em
linha de conta a diferença em que se encontram os agentes quanto às
necessidades, possibilidades e realizações. O poder político tem de tratar de
modo diferente o que é diferente
Assim, no âmbito desta visão
encontra-se a dimensão ética, ligada às exigências de justiça social.
A noção de bem-estar fica
assim referida não apenas aos bens inerentes à dignidade da pessoa (saúde,
educação, mas compreende também o modo como cada pessoa pode converter estes
recursos em liberdade real.
Cabe ao poder político e aos
cidadãos a tarefa da construção, a partir deste novo paradigma, de uma
sociedade mais justa.
Publicada em 2009, em
inglês, a Almeida procedeu neste ano à tradução e edição desta obra. O
perfil de publicações da editora, pautado por critérios de relevância
científica, mais uma vez foi certeiro na escolha.
O apreço pelo texto em causa
tem-se manifestado em vários quadrantes, não apenas por conceituados académicos
e intelectuais (Arrow, Nobel da Economia, e Hilary Putnam, filósofo) mas também
por parte de personalidades políticas destacadas e de sectores de público mais
esclarecido.
Com efeito, a obra sumariza
e amplifica análises (economia de mercado, pobreza, desenvolvimento, teoria da
escolha social, direitos humanos, razão prática, dinheiro e valor, etc.) que o
autor tem prosseguido desde a publicação do seu primeiro artigo (“Games,
Justice and General Will”, in Review Mind, September, 1965).
A investigação sobre a ideia
de justiça visa construir uma teoria dotada de fundamentação
empírico-existencial e simultaneamente dotada de universalidade e plasticidade
que a torne operatória na prática social e política.
Para alcançar este objetivo,
o método seguido por Sen não é especulativo mas científico, recorrendo, para
além da lógica argumentativa fundamentada e consequente, aos instrumentos de
análise da matemática (por exemplo, “o dilema do prisioneiro” da teoria dos
jogos é usado no primeiro artigo referido e aparece na obra de me ocupo com a
mesma estrutura, embora com outra roupagem, para o mesmo fim) de modo a mostrar
a socraticamente os limites e inconsequência das respostas dadas: o modelo de
justiça de Rawls; a teoria da escolha racional da escola neoclássica; os
limites do instrumento de análise custo benefício da teoria neoclássica são
alguns dos temas.
O método recolhe em primeiro
lugar as perspetivas e teorias constituídas oriundas de várias áreas do saber
(a filosofia política, a economia, a sociologia, a literatura, o direito);
seguidamente submete a análise problematizante esse legado, invalidando ou
reconhecendo a sua pertinência apenas limitada; e finalmente compõe um novo
saber, consistente, verdadeiro e extensivo à condição humana no seu
enraizamento natural.
A interdisciplinaridade do
método de investigação, o plano de imanência em que se efetiva, a natureza
fundante do buscado e o resultado alcançado são marcas evidentes de que estamos
em presença de uma obra de filosofia social e política original.
A objetividade, coesão
interna e fecundidade heurística fazem dela um princípio regulador que deve
animar toda a ação humana, sobretudo daqueles que estão no centro das grandes
decisões que interferem na vida do outro (homem ou natureza). Para que a
justiça tenha uma tradução efetiva na vida dos homens.
Pelo significado de que se
reveste a opinião Hilary Putnam ( o maior representante atual da corrente
de filosofia analítica norte-americana), que retirei do site de apresentação da
obra da Almedina, passo a transcrevê-la:
“Creio queA ideia de Justicade
Amartya Sen é uma das contribuições mais importantes para o tema desde que
apareceu a Teoria de Justiça de Rawls, em 1971. A abordagem desse livro foi
tentar trabalhar uma base para um Estado-nação idealmente justo.
Tendo
perfeito conhecimento do caminho de rutura trilhado por Rawls, Sen – laureado
com o prémio Nobel em Economia e teoria da escolha social [em 1986], e um
profundo filósofo social –, com esta abordagem ‘transcendental’, chama a
atenção para problemas sérios e argumenta que aquilo que precisamos com
urgência, neste nosso mundo conturbado, não é de uma teoria de um Estado
idealmente justo, mas de uma teoria que possa fornecer a base para juízos, como
a justiça comparativa, juízos que nos digam quando e por que razão estamos a
aproximar-nos ou a distanciarmo-nos da concretização da justiça num mundo
globalizado.
Sen traça
com o seu conhecimento, em todos os campos que menciono, ideias básicas para a
tal teoria. Além disso, discute, com iluminado pormenor (e histórica e
trans-culturamente informado), questões fundamentais relacionadas com a
democracia, os direitos humanos, o desenvolvimento económico e a natureza e os
limites da democracia – a objetividade ética.
Esta é uma
obra que merece o maior número de leitores.”
Procurarei
em próximo post apresentar alguns lineamentos desta obra. Para já, sugiro a leitura do artigo "Quality of Life:India vs. China".
Vale sempre a pena recordar que, ao longo da cultura grega e do pensamento
de tradição cristã, o tema da desobediência civil à autoridade foi, em vários
autores e em vários momentos, objeto de consideração.
Com efeito, como S. Tomás estatuiu, o poder não tem legitimidade em duas
situações: quando é alcançado por um ato de usurpação e quando se desvia no seu
exercício de realizar a sua principal função, construir uma sociedade mais
justa.
Como exemplo de reflexão sobre o tema, tomo este excerto daCidade de Deus, de S. Agostinho, Livro IV, Capítulo IV:
“O que são os impérios sem a justiça senão grandes
reuniões de salteadores? E uma reunião de salteadores não é outra coisa senão
um pequeno império, pois que ela forma uma espécie de sociedade governada por
um chefe, ligada por um contrato e em que a partilha do saque se faz segundo
certas regras previamente estabelecidas?
Não é de espantar que os impérios, súcia de
malfeitores, recrutem homens venais para se apoderarem de lugares e aí fixarem
a sua dominação, tomando cidades, subjugando os povos, venham a
receber o nome de reino, não porque se tenham despojado da sua cupidez
mas porque souberam aumentar a sua impunidade.
Foi o que um pirata, que caiu no poder de Alexandre o
Grande, soube muito bem dizer-lhe com razão e espírito. Tendo-lhe o rei
perguntado porque atormentava o mar, ele respondeu-lhe com altivez:
“Com o mesmo direito com que tu atormentas a terra.
Mas como apenas tenho um pequeno navio, chamam-me pirata, enquanto tu, por
teres uma grande frota, te chamam conquistador.”
Ponto 3. John Rawls, na sua
obra neocontratualista Uma Teoria da Justiça, analisa o tema da
desobediência civil no capítulo VI. A teoria desta é concebida apenas para o
caso de uma sociedade quase justa, que seja bem ordenada, mas na qual ocorram
sérias violações da justiça. É considerada um acto político, não-violento,
decidido com o objetivo de provocar uma mudança nas leis ou na política.
Trata-se de uma apelação pública de que os princípios da cooperação entre
homens livres e iguais não estão a ser respeitadas, distinguindo-se de outras
formas de protesto como a ação militante e a objeção de consciência.
Este ato fundamenta-se na
conceção de justiça partilhada que subjaz à ordem política, mas só é legítimo
quando ocorre a violação persistente e deliberada dos dois princípios básicos
da conceção de justiça, durante um período de tempo extenso, em especial a
lesão das liberdades fundamentais, as quais, pelo primeiro princípio, são
direitos reconhecidos a cada pessoa de modo igual. Através da desobediência,
uma minoria força a maioria à opção de persistir em manter a sua posição ou de,
tendo em vista o senso comum da justiça, reconhecer as exigências legítimas
daquela.
A desobediência civil deve
ser precedida de apelos normais à maioria política. Deve haver prévias
tentativas para fazer com que a lei seja revogada. Apenas após a desconsideração
dos protestos e demonstrações legalmente permitidos é que se deve invocar a
desobediência civil. Esta decisão deve ser tomada com toda a prudência, após
feita uma correta avaliação da razoabilidade do exercício de tal
“direito”. E é também importante que ela seja compreendida, já que se trata de
um apelo público por parte daqueles que são vítimas de sérias injustiças e que
não estão obrigados à submissão.
Ao lado de eleições livres e
regulares e um poder judiciário independente, competente para interpretar a
constituição, a desobediência civil, quando utilizada de forma moderada e
ponderada, ajuda a manter e a fortalecer as instituições justas.
O facto de os cidadãos
responderem à violação das liberdades fundamentais por meio da desobediência civil,
significa o reforço e não enfraquecimento destas liberdades. A desobediência
civil é uma forma de introdução, dentro dos limites da fidelidade ao direito,
de um mecanismo de último recurso que mantenha a estabilidade de uma
constituição justa. E embora ilegal, não viola o direito, pois enquanto
exercício de um direito de liberdade política é norteada no seu princípio pelo
interesse do interesse comum.
Se a desobediência civil
injustificada ameaçar a paz civil, a responsabilidade não será daqueles que
protestam, mas daqueles cujo abuso do poder e da autoridade justifica essa
oposição.
A utilização do aparelho
coercitivo do Estado para conservar instituições ou leis manifestamente
injustas é em si mesma uma forma ilegítima do emprego da força, à qual se terá,
a partir de certo momento, o direito de resistir.
Conclusão. O carácter
compromissório da Nossa Constituição, onde estão patentes as influências de
diversas correntes ideológicas (como afirma Jorge Miranda), não permitirá
descortinar nela também a sua inspiração liberal, à maneira de Locke e
Montesquieu mais do que à maneira de Rousseau?
Se assim for, não seria
pertinente retomar, em próxima revisão constitucional, esse
espírito, nomeadamente a partir da letra da sua redação inicial, que estabelecia,
no seu artigo 20, ponto 2., “o direito de resistência do cidadão a
qualquer ordem que ofenda os seus direitos”? Direito esse que sucessivas
revisões extirparam, ficando a defesa do cidadão, na versão actual da
Constituição, confinada ao “direito de petição e de ação popular”, nos quadros
previstos pela lei.
Poderíamos argumentar que a
nossa história e a nossa cultura nunca se moveram para a defesa e a consagração
constitucional deste direito.
Mas a aguda consciência dos
direitos, hoje mais patente do que no passado, poderá ser uma razão pela pensar
a contra-pelo da história e da cultura, para reforçar a capacidade de
intervenção política dos cidadãos.
A consagração constitucional
do direito de desobediência civil, para além de explicitar um direito fundamental
inerente ao “espírito das leis” de um regime liberal, tornaria a nossa lei
fundamental mais em consonância com a natureza imanente da unidade social e com
a exigência de uma sociedade mais justa.
A desobediência civil é a forma
específica do protesto em que a infração deliberada de uma lei se faz de modo
não- violento (com civilidade) e com a aceitação da sanção penal por parte do
infrator. De natureza política, assume a forma de um movimento coletivo em que
se pretende mudar uma determinada lei ou orientação política considerada
injusta.
A história política (sobretudo a dos
EUA, donde surgiram os mais relevantes contributos de reflexão teórica sobre o
assunto) apresenta-nos múltiplos exemplos em que os atos de desobediência civil
foram coroados de êxito, o que prova a sua eficácia como fator de estabilização
da conflitualidade social e de reforço das condições de uma sociedade mais
justa. Facto que reforça a tese dos que defendem o valor deste recurso de luta
política, contra os seus detratores.
A argumentação política e o suporte
jurídico que a justifica, de que a lei, produzida por um órgão legítimo de uma
ordem democrática onde reside a autoridade, exige estrita obediência por parte
daqueles a quem se dirige, não resiste a uma análise mais aprofundada. Para o
fazer, temos proceder a uma análise rigorosa de modo a:
1. determinar
(com recurso a Alain Touraine) o lugar do político na trama das relações
sociais, de modo a compreender o modo de articulação dialética do par
autoridade-obediência;
2. definir
a natureza do “contrato social” (na perspetiva de Hannah Arendt) que está
na base da ordem democrática.
3. circunscrever
as condições em que é legítimo, segundo John Rawls, o recurso à
desobediência civil, de modo a retirar a necessidade de uma
incorporação na Constituição do direito de desobediência civil.
Ponto1. O sociólogo Alain Touraine
considera que a cultura (valores, modelos e regras culturais) não surge como um
sistema independente da ação, mas antes em estreita relação com ela.
Deste modo, as várias instituições
(jurídicas, políticas, escolares, etc.) devem ser pensadas articuladamente nas
suas diferentes dimensões, no interior dos âmbitos da vida social, com as
diversas relações que as caracterizam.
Por isso, a “ordem social é
inteiramente o produto de relações sociais, sendo a partir destas deve ser
explicado o sentido do agir no qual o ator está implicado.
A capacidade que a sociedade tem de
se produzir a si mesma (historicidade) consiste num conjunto de orientações
culturais constituídas em práticas sociais, as quais não são controladas, na sua
criação e implementação, pelo conjunto do grupo. O que leva os excluídos a um
processo de reapropriação do objeto.
Neste quadro, a unidade das
sociedades modernas deve ser pensada como movimento de libertação da
criatividade humana, que se manifesta em todos os aspetos da organização
social. O que requer um alargamento do espaço público, uma maior
responsabilidade dos cidadãos pelos assuntos comuns e uma maior abertura do
poder político em relação às formas de dissenso emergentes dos grupos diretamente afetados
pelas decisões tomadas por aquele.
Ponto 2. “Na
sequência de Tocqueville, que admirava as «associações voluntárias», Arendt põe
em evidência que, num regime político onde as decisões são tomadas por maioria,
é necessário atender a voz das minorias, porque o seu silenciamento transforma
o “princípio da maioria” numa «ditadura da maioria».
Arendt
distingue duas aceções de contrato: tomado em sentido “vertical» e em sentido
“horizontal». A primeira, de Hobbes, consiste na submissão da
maioria dos indivíduos a uma minoria. A segunda, de Locke e de
Montesquieu, implica que cada indivíduo se comprometa a partilhar o poder com
os outros, instituindo assim uma comunidade fundada no princípio da liberdade entre
iguais. Na base desta aceção, encontra-se a ideia de que há, por parte de cada
contraente, um “consentimento tácito” em relação à matéria do próprio contrato.
Arendt
argumenta que a desobediência civil não viola o “contrato social” no qual o
indivíduo se comprometeu a obedecer às leis civis, porque ela emana deste, se o
tomarmos em sentido horizontal”. Numa sociedade fundada no contrato horizontal,
essencialmente democrática, a lei é o resultado de um debate entre iguais, no
espaço público, que conduz a um acordo.
A
"maioria" deve ser pensada como um "instrumento político"
necessário para a tomada de decisões e não como um “princípio político”, com
legitimidade para tomar decisões contra a minoria. Por isso, mesmo depois das
decisões tomadas e das leis votadas, a minoria tem o direito de continuar a
exprimir publicamente o seu ponto de vista.
Segundo H.
Arendt, o “princípio do consenso” implica, por essência, a “legitimidade do
dissentimento”. Tanto o acordo como o desacordo são constitutivos do debate que
ocorre no espaço público.
A própria
ideia de consenso é sempre provisória, passível de evoluir, por alteração ou
anulação para outro consenso. Não há o “consenso de direito” inamovível a todo
o potencial dissenso.
O "primeiro corpo" foi definido nestes termos :
“é aquele que é um quase objeto, que nos é o mais próximo possível da nossa
intimidade. É o corpo que nos tem”. Vários autores falam do corpo neste
sentido: tanto no domínio da literatura (por ex. Vergílio Ferreira) como na
filosofia (Merleau-Ponty, Michel Henry, Maine de Biran).
O exemplo escolhido pelo conferencista como exemplificação o escritor português, que pensa e escreve a partir de uma tipologia e de uma linguagem
ontológicas de matriz fenomenológica (Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty).
Desde a Aparição (1959)
que este enquadramento se patenteia, por exemplo quando refere que a descoberta
da nossa individualidade é uma “aparição”, dotada de evidência apodítica e
surge sob o modo de um abalo original: “Olhei. Quem estava diante de mim era eu
próprio, refletido no grande espelho do guarda- fatos (...). Diante de mim
estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em
mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto”
Esta filiação fenomenológica deste escritor não se altera
substancialmente ao longo da sua obra, manifestando-se com um pendor mais
romanesco ou mais filosófico consoante a obra em causa. O corpo é sempre dado numa intuição dotada de
evidência e é nele que reside o “eu”. Esta solidarização do corpo por com o “eu”
surge reafirmada em Invocação ao meu
Corpo (1969): “Regressas ao teu corpo, dizes “sou eu” (p.70); e “Regresso a
mim, ao meu “corpo” onde todo o milagre aconteceu (…) na brevidade de um
pequeno ser, “eu”. E todavia (…) Trago em mim a força monstruosa de
interrogar.”( p.15).
Os limites desta abordagem fenomenológica do corpo são de
seguida referidos. Com efeito,a fenomenologia tem vindo a ser erodida de vários
horizontes: tanto a partir do interior do movimento, como o faz Lévinas, e do seu exterior, por ex. José Gil, ambos
convocados nesse momento.
Emmanuel Lévinas usa o método fenomenológico até à exaustão dos
seus limites, invertendo-o: a interação entre o sujeito e o outro é
assimétrica, na medida em que o rosto interpela e convoca aquele à
responsabilidade aquém da consciência, não podendo tal mandamento ser um
fenómeno do qual se tem uma intuição. O plano ontológico da consciência fica
subordinado a um plano de determinações que lhe são anteriores, aquém ou além
da consciência.
José Gil a partir de outros pressupostos teóricos (sobretudo Deleuze)
vai na sua obra A imagem nua e as
pequenas perceções (1996) considerar que nos encontramos mergulhados num
mundo de imagens-nuas produtoras de “pequenas percepções”. Estas estão
associadas ao que designa de “pensamentos voadores”, que são conteúdos
não-conscientes de sentido, que impulsionam o espírito procura das suas significações
verbais, preenchendo o seu vazio.
Este conceito de imagens nuas, que nascem a partir do
inconsciente e das forças que o estruturam, vem modificar os conceitos de
visível e de invisível da fenomenologia de Merleau-Ponty. Assim, para Gil o
invisível não é a suspensão da sua apreensão na presença do visível, mas é uma
apreensão posta ao contrário da do visível.
A consequência decorrente
da leitura de Gil é clara: a abordagem fenomenológica do corpo perde
funcionalidade ao não tomar em linha de conta este fundo energético – o
significante flutuante – a partir do qual se pode ou deve fazer a semiose do
visível, produzindo a significação inteligível dos movimentos e das expressões em
que o corpo se manifesta.
Prado Coelho interveio no
espaço público português em vários âmbitos: na docência académica de Teoria da
Literatura; na análise crítica de obras de literatura, de cinema e de dança; na
intervenção cultural com artigos de opinião, com incidência na problematização
da atualidade política; na criação ensaística; em comunicações de seminários; e
no desempenho de funções culturais em França.
Em 06/11/1997 teve lugar o
2º Encontro sobre o corpo “As Margens do Corpo”, na Faculdade de Motricidade
Humana, tendo participado o ensaísta com a conferência “Corpo, cultura e
ideologia”.
Estive presente com o Paulo
Prudêncio (que no seu blog "Correntes" se referiu já a esse
Encontro), a seu amável convite, e guardo uma memória grata do acontecimento. E
vou procurar rememorar esse momento como tributo pessoal a Eduardo Prado
Coelho, que infelizmente já não está entre nós.
Recorro para esse desiderato
a alguns escassos apontamentos que guardei, explicitando a arquitetura de
conjunto da conferência e descrevendo o processo seguido na sua explanação, com
a resenha do seu conteúdo e das referências convocadas, que vão clarificando o
horizonte de inteligibilidade sobre o corpo assumido pelo autor.
Aquela penúria obriga-me a
incluir neste texto alguma passagem dos autores citados, que considere
oportuna, sem distorcer ou subverter o que então foi dito.
Sempre com recurso à citação
de autores representativos do que tematizava, a conferência decorreu em três
momentos principais: primeiro, focalizou as principais interpretações a que o
tema tem sido sujeito; a seguir, trabalhou a relação do corpo com o espaço;
finalmente, debruçou-se, sem menos detença, na relação corpo-eu.
O orador orientou-se
por um procedimento didático que facilitou a compreensão da informação
fornecida e que, dada a relação feita de diferenciações, com ruturas e continuidades,
entre os diferentes e singulares sistemas de significação, inculcou no
auditório a noção de que a semiose do problema do corpo é umfieri, a continuarad infinitum.
Esteve presente nesta
démarche de Prado Coelho o seu dispositivo crítico, que se escora numa
constelação de autores confluentes na validação da pertinência
(ontológica, epistemológica e semiótica) dos princípios da alteridade e
da diferença em detrimento da mesmidade e da unidade (Peirce, Blanchot,
Deleuze, José Gil, Clarice Lispector, Duras et alii; cf.Os universos da Crítica, Cap.
18 “E tudo/o resto – é literatura”, pp. 479-526).
Neste sentido, desenharam-se
duas matrizes concorrenciais em função das quais girou a exposição: a matriz
fenomenológica, que se inspira em Husserl e remotamente em Descartes; e a
matriz freudiana e marxista, presente em vários autores referenciados e que
ocupou o maior espaço da comunicação.
Logo no início, o
conferencista fez um paralelo entre o discurso da ciência e o discurso da
literatura: aquele toma o corpo como uma máquina, sendo a investigação
conduzida com recurso à matemática (por ex. G. Borelli, anatomista francês do
século XVIII), enquanto o segundo vê o texto literário como processo de
tradução, num registo estético, do corpo nos seus vários atos expressivos de
uma individualidade própria com uma determinada enquanto expressões e das
várias modalidade em que se exprime (ex.: Balzac). São duas abordagens
irredutíveis e desenhou-se desde logo o espaço em que o autor se iria mover:
ciências humanas, filosofia e sobretudo a literatura.
Seguidamente, explicitou um
conjunto de conceitos necessários para se proceder a uma reflexão ontológica
sobre o corpo: ao movimento é à expressão já referidos, acrescentou o esforço e
a instalação, subordinados às categorias do tempo e do espaço.
Neste horizonte, propõe a
tese de Franços Dagognet: “le corps un et multiple”, que faz sua sem mais
aclaramentos. A própria multiplicidade do corpo se manifesta igualmente nas
várias narrativas que tematizam o corpo, referenciando aquilo a que chamou
“quatro corpos”. Na convicção, talvez, de que se possa revelar o sentido
deste dito de Beckett: “Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde
nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro.
Mover-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Não. Sair nenhum. Voltar
nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado”. (“Worstward
ho”, Pioravante marche)
A senhora de Templin – a Chanceler Angela Merkel - é hoje a papisa da Europa,
o seu magister dixit, de dedo estendido, dita a lei. A diversidade das opiniões
e a complexidade dos problemas com que o espaço europeu e o mundo vivem é mais
um motivo para o seu espírito encontrar (ou pensar que encontra) a linha de
rumo que forneça um enquadramento da sua ação politica.
Mas ela não anda a reboque da história, porque a sua configuração mental
está bem alicerçada, tanto em valores fundamentais quanto em hábitos de
pensamento específicos, factos que aliados à sua personalidade combativa e à
sua grande inteligência a colocaram no papel timoneiro que hoje desfruta.
Estando os destinos da Europa grandemente dependentes desta líder, é urgente
a elaboração de um tentame de psicografia do sujeito, que ajudará sobretudo a
determinar o que dela pode ser expectável. Há que encontrar elementos na
sua formação que estarão a determinar a sua praxis política.
Vou considerar dois: a sua educação luterana e os valores por ela
veiculados; e a sua formação científica na área da química quântica.
O pai de Merkel, que participou ao lado do exército russo contra a invasão
nazi da Rússia, tornou-se pastor luterano da cidade de Templin. Naturalmente,
pela sua participação na guerra do lado soviético e pela sua conceção do lugar
da religião na vida, manteve boas relações, até mesmo de privilégio, com o
regime comunista da RDA, sendo crítico da política da RFA e do processo de
Reunificação. A sua ação no mundo real esgotou-se na ação educacional, tendo
criado uma biblioteca para a comunidade, e no serviço religioso da salvação das
almas.
Esta é a atitude fundamental em relação à política proposta por Lutero, que
deixou assim na sua Igreja um rasto de subserviência e de conformismo em
relação ao poder político e económico, não obstante a coragem legítima revelada
na sua revolta religiosa contra o Papado. Como exemplo do conservadorismo
de Lutero, menciono a sua posição de condenação das revoltas camponesas,
lideradas por Thomas Münzer, contra os abusos dos príncipes. Marx e Ernst Bloch
dão-nos bons enfoques desse acontecimento histórico bem como da dimensão
profética do homem revolucionário.
Lutero considera que a fé é o único meio da salvação e que ela se encontra
nos ensinamentos bíblicos, enquanto Münzer coloca a origem daquela na interioridade
do homem. São duas atitudes opostas em relação à situação do homem no mundo: a
fé para Lutero requer as boas obras, que vem compensar as misérias trazidas ao
mundo pela injustiça que nele há; para Münzer onde a fé mora, aí tem de ser
plantada a justiça, mesmo que por meios revolucionários.
É neste horizonte ideológico que a Chanceler Angela Merkel, ao longo da
infância e da juventude, vai estruturando a sua personalidade, ficando
marcada pelos traços de obediência incondicional a Deus, de dedicação ao
trabalho, de espírito de sacrifício e de rigor no pensamento e na ação.
A par destes valores, manifesta a mesmo
conformismo tacticista do pai em relação à ordem política vigente então na RDA:
esteve envolvida na Freie Deutshe Jugend (a organização da
juventude comunista da RDA), chegando a ser secretária da educação política
desta. E é também significativo desta mesma atitude subserviente o facto de, no
dia em que se celebrava a Queda do Muro de Berlim, ela ficar a trabalhar no seu
laboratório, só aparecendo na rua no fim do trabalho.
A sua formação científica, com
relevância para a matemática enquanto instrumento de descoberta das constantes
presentes no fracionamento da complexidade quântica dos elementos, configurou-a
para um tipo de raciocínio operacional sistémico, segundo o qual as
diferenciações se esbatem e tornam inteligíveis num plano de conjunto. O grande
empenho que pôs sempre no estudo, sempre com excelentes resultados mesmo na
aprendizagem do russo, apenas reforça a ideia de que todas as peças se conjuguem
numa sinfonia harmónica de conjunto.
Por outro lado, há na personalidade de
Merkel um traço dinâmico, com uma provável base genética, que a dispõe para,
quando as circunstâncias o exigem, pessoais ou objetivas, se capaz de decidir
em descontinuidade com o que era esperável.
Foi assim que teve a coragem de se
divorciar do primeiro marido, de quem ficou com o nome Merkel, e de aceitar
entrar na política, numa ascensão progressiva até ao patamar atual. É revelador
deste traço de decisão a presença de Catarina II da Prússia, cuja imagem está
sempre sobre a sua secretária.
Quando se deu a mudança de regime na
RDA, criaram-se as condições objetivas para a transferência destas atitudes
básicas para a nova situação democrática emergente. Merkel vai cada vez mais
aprofundando então a sua vinculação aos ideais democráticos emergentes, que
existirão já muito antes do desabar do Muro, sendo impossível discernir como
foi fazendo esta aprendizagem. Mas o cerne do problema encontra-se na
compleição específica da sua personalidade, que só muda quando circunstâncias
externas a isso obrigam.
Assim, mesmo considerando a sua capacidade de reorientar a sua trajetória
política, o seu modo de pensar pode ser descrito a partir da lei da isocronia
do pêndulo, que estabelece que o tempo gasto por um corpo suspenso por um
fio flexível em torno um ponto fixo, executa movimentos alternados em torno da
posição central, na mesma unidade de tempo.
Merkel, como se fosse um pêndulo, foi obrigada pela história a oscilar
entre dois mundos diametralmente opostos nos seus princípios. O seu ponto fixo
– os seus valores e atitudes fundamentais – continuarão a estar presentes aqui
como antes estiveram noutro lado.
E por isso quando chegou à política, sem para isso estar fadada, foi capaz
de decidir por ela própria esse novo caminho a seguir, mas só pode estar nele
ao seu modo, com a firmeza das posições que assume fundadas na sua convição de
que isso é o mais justo e segundo procedimentos que julga pragmáticos, que
herda de toda a sua formação, e fundamentalmente do seu trabalho científico no
laboratório.
A cosmovisão metafísica que é a sua (em que o sim e o não se excluem mutuamente),
de base religiosa, e o quadro científico positivista a partir dos quais pensa e
interfere nos acontecimentos históricos colocam as seguintes e magnas questões:
- será esta grelha de análise, mesmo convocando o apoio de modelos de volatilidade
estocástica, capaz de interpretar adequadamente a complexidade das relações
entre os homens, nos seus vários domínios, podem ser interpretados?
- não o sendo, cairá Merkel na conta de que o tempo
oportuno da grande decisão está à beira do esgotamento?
O dia-a-dia dos europeus, mesmo que o modelo de Merkel seja racional (o equilíbrio
das finanças como condição do crescimento económico), vai-se agravando, o que
prova que aquela receita que se vai seguindo não é eficaz.
É preciso experimentar novas soluções para encontrar uma linha de resolução
do problemas que nos afetam. Não há problemas insolúveis na vida das sociedades:
o que é preciso é a ousadia inventiva de encontrar as melhores respostas a
partir dos instrumentos de análise que se revelaram com sucesso noutras
situações críticas.
Assim, só a luta social e a boa argumentação política, numa conjugação de
esforços multilaterais, poderão operar o clinamen que desviará
a rota do pêndulo de Merkel em benefício da Europa.