terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

"À Música": um elogio por Schubert


Franz Schubert: An Die Musik, D 547 - Felicity Lott

An die musik / À música

Du holde Kunst, in wieviel grauen Stunden,
Wo mich des Lebens wilder Kreis umstrickt,
Hast du mein Herz zu warmer Lieb entzunden,
Hast mich in eine bessre Welt entrückt!

Oft hat ein Seufzer, deiner Harf entflossen
Ein süsser, heiliger Akkord von dir
Den Himmel bessrer Zeiten mir erschlossen,
Du holde Kunst, ich danke dir dafür!

Tradução para Português:
À música (Franz von Schubert)

Tu graciosa arte, em quantas cinzentas horas
Em que o selvagem círculo da vida me cerca,
Inflamaste o meu coração para novo amor,
Me desviaste para um mundo melhor!

Muitas vezes um suspiro da tua harpa se evolou
Um doce, sagrado acorde de ti
O céu de melhores tempos me abriu,
Tu graciosa arte, eu te agradeço por isso.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

"morire di fame": um excerto fílmico de Pasolini


Quando rodava A Paixão segundo S. Mateus, Pasolini produziu um curto filme intitulado "La ricotta", em 1962, que podemos traduzir por "o requeijão".
O filme de Pasolini é a transcrição ficcional de um filme em processo de realização, sob a direção de Orson Welles, sobre a Crucificação de Cristo. Assim, o que vemos neste filme é Welles a dirigir os seus atores, numa situação de mise-en-abîme, funcionando como moldura de um acontecimento passado que se transporta para a situação presente em que o povo se encontra: o catolicismo romano, em vez de força libertadora, é uma ruína de um passado que mantém a sua sobranceria de impiedade em face do povo miserável, pobre e excluído.
A própria epígrafe que surge no frontispício do filme de Pasolini marca desde logo a dimensão de crítica impiedosa ao catolicismo, heresia que valeu o encarceramento ao seu autor.
Transcrevo o diálogo que surge numa cena do filme (cerca do 23.30-24.15 minutos) entre o personagem que representa o povo - é o bom ladrão da narrativa bíblica, o seu nome é Stracci, o farrapo, que apenas quer comer, sobretudo o requeijão, porque está sempre com fome ao longo do filme e que, no fim, morre de indigestão - e o personagem que representa Cristo.

"- O bom ladrão (Stracci) – Tenho fome estou a ficar amaldiçoado.
- Cristo – Tens e eu deixo-te tê-la.
- O bom ladrão – És um Cristo Bom. Pensas que não tenho direito de me queixar?
- Cristo – Faz como queiras, mas eu não te levarei para o reino dos céus.
- O bom ladrão – Mas eu decidirei pelo reino da Terra.
- Cristo – Especialmente agora que o teu partido está no poder.
O bom ladrão – Como se o teu fosse melhor.
- Cristo – Eu não te levo. Tu estiveste sempre com fome, ainda estás com aqueles que te fazem passar fome.
– O bom ladrão – Alguns têm uma ocupação, outros, outra. A minha deve ser morrer de fome."

“Eu sou uma força do passado”, poema de Pasolini




Eu sou uma força do passado
Só na tradição está o meu amor.
Venho das ruínas, das igrejas,
das peças de arte de altar, das
aldeias abandonadas sobre os Apeninos ou sobre os pré-Alpes,
onde viveram os irmãos.
Deambulo pela Tusculana como um louco,
Pela Apia como um cão sem dono.
Ou olho os crepúsculos, as manhãs
sobre Roma, sobre a Ciociara, sobre o mundo,
como os primeiros atos da Pós-história,
aos quais assisto, por privilégio de registo civil,
da orla extrema de alguma idade
sepulta. Monstruoso é quem nasceu
das entranhas de uma mulher morta.
E eu, feto adulto, navego
mais moderno do que todos os modernos
a procurar irmãos que não existem mais.

Poesia de Pasolini, inserta no filme La Ricotta (O requeijão), e também na obra Poesia em forma de rosa, 1964

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

“As velhas negras”, poema de Gonçalves Crespo

Mulata Quitandeira, 1893-1905
Mulata Quitandeira, 1893-1905
Antônio Ferrigno (Itália, 1863-1940)
óleo sobre tela, 179X135cm
Pinacoteca do Estado de São Paulo

A Mmme Aline de Gusmão

As velhas negras, coitadas,
Ao longe tão assentadas
Do batuque folgazão.
Pulam crioulas faceiras
Em derredor das fogueiras
E das pipas de alcatrão.

Na floresta rumorosa
Esparge a lua formosa
A clara luz tropical.
Tremeluzem pirilampos
No verde-escuro dos campos
E nos côncavos do val.

Que noite de paz! que noite!
Não se ouve o estalar do açoite,
Nem as pragas do feitor!
E as pobres negras, coitadas,
Pendem as frontes cansadas
Num letárgico torpor!

E cismam: outrora, e dantes
Havia também descantes,
E o tempo era tão feliz!
Ai! que profunda saudade
Da vida, da mocidade
Nas matas do seu país!

E ante o seu olhar vazio
De esperanças, frio, frio
Como um véu de viuvez,
Ressurge e chora o passado
Pobre ninho abandonado
Que a neve alagou, desfez…

E pensam nos seus amores
Efêmeros como as flores
Que o sol queima no sertão…
Os filhos quando crescidos,
Foram levados, vendidos,
E ninguém sabe onde estão.

Conheceram muito dono:
Embalaram tanto sono
De tanta sinhá gentil!
Foram mucambas amadas,
E agora inúteis, curvadas,
Numa velhice imbecil!

No entanto o luar de prata
Envolve a colina e a mata
E os cafezais ao redor!
E os negros mostrando os dentes,
Saltam lépidos, contentes,
No batuque estrugidor.

No espaço e amplo terreiro
A filha do Fazendeiro,
A sinhá sentimental,
Ouve um primo-recém-vindo,
Que lhe narra o poema infindo
Das noites de Portugal.

E ela avista entre sorrisos,
De uns longínquos paraísos
A tentadora visão…
No entanto as velhas, coitadas,
Em
Cismam ao longe assentadas
Do batuque folgazão…-

Gonçalves Crespo, Obras Completas, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1942



segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Ezra Pound, "With Usura"

É com grande comoção que escutamos este Canto XLV de Ezra Pound, cuja modulação litânica, na própria voz do autor, lhe confere uma acentuação dramática que o tinge de humanidade e de pungente verdade.
Trata-se de uma acusação virulenta contra a prática da usura levada a cabo pelo sistema financeiro: desvia o dinheiro da sua função nobre, que é estar ao serviço da criação da riqueza; viola as leis da natureza; e sobretudo é inimiga da grande criação artística e cultural.
O poema convoca-nos, pela voz de um poeta adivinho, a despertar para uma tomada de posição, esclarecida e democrática, contra a “epidemia da usura”.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O conto “O cágado”, por Almada Negreiros

Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito — um cágado.
O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade, o tal cágado da zoologia.
O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. 0uando chegou perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa.
O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e nada.
Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo, exatamente como uma vara perdida.
Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de fato submetida a nova orientação. Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava um bom balde dos maiores que há. Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do cágado. Um balde só já ele sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que já faltavam só dois para cem e que a água não havia meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a pensar em todas as espécies de buracos que possa haver.
— E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? - pensava para si o homem que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos eu, que sou muito senhor da minha vontade.
O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do cágado ao almoço. A pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para as horas de almoçar.
— Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em prova, esta é a ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de fraquezas!Ao lado do buraco havia uma pá de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e pôs-se a desfazer o buraco. A primeira pazada de terra, a segunda, a terceira, e era uma maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os nossos olhos em presença do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois dos antigos. Na verdade, de cada vez que enfiava a pá na terra, com fé, com robustez, e sem outras intenções a mais, via-se perfeitamente que estava ali uma vontade inteira; e ainda que seja cientificamente impossível que a terra rachasse de cada vez que ele lhe metia a pá, contudo era indiscutivelmente esta a impressão que lhe dava. Ah, não! Não era um vulgar trabalhador rural. Via-se perfeitamente que era alguém muito senhor da sua vontade e que estava por ali por acaso, por imposição própria, contrafeito, por necessidade do espírito, por outras razões diferentes das dos trabalhadores rurais, no cumprimento de um dever, um dever importante, uma questão de vida ou de morte — a vontade.
Já estava na nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial, foi completamente indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem.
A mil metros de profundidade a pino, o homem que era muito senhor da sua vontade foi surpreendido por dolorosa dúvida — já não tinha nem a certeza se era a quinquagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível recomeçar, mais valia perder uma pazada.
Até ali não havia indícios nem da passagem da vara, da água ou do cágado. Tudo fazia crer que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o homem era muito senhor da sua vontade, sabia que tinha de haver-se de frente com todas as más impressões. De fato, se aquela tarefa não houvesse de ser árdua e difícil, também a vontade não podia resultar superlativamente dura e preciosa.
Todas as noções de tempo e de espaço, e as outras noções pelas quais um homem constata o quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento. Agora, que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se quer pedir, eram desnecessários todos os raciocínios e outros arabescos cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios músculos.
Umas vezes a terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes camadas de areia e de lama; todavia, estas facilidades ficavam bem subtraídas quando acontecia ser a altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que há no subsolo. Sem incitamento nem estímulo possível por aquelas paragens, é absolutamente indispensável recordar a decisão com que o homem muito senhor da sua vontade pegou ao princípio na pá do trabalhador rural para justificarmos a intensidade e a duração desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do centro da Terra, que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efetivamente interminável. Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim se explica ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos.
Entretanto, cá em cima na terra, a família do homem que era muito senhor da sua vontade, tendo começado por o ter dado por desaparecido, optara, por último, pelo luto carregado, não consentindo a entrada no quarto onde ele costumava dormir todas as noites.
Até que uma vez, quando ele já não acreditava no fim das covas, já não havia, de fato, mais continuação daquele buraco, parava exatamente ali, sem apoteose, sem comemoração, sem vitória, exatamente como um simples buraco de estrada onde se vê o fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a revolta servia para nada.
Caindo em si, o homem que era muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas decisões, outras; mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado de todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha, sobretudo, muito sono, lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e almofada fofa, tão longe! Maldita pá! 0 cágado! E deu com a pá com força no fundo da cova. Mas a pá safou-se-lhe das mãos e foi mais fundo do que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma coisa de que ele já se tinha esquecido há muito - a luz do sol. A primeira sensação foi de alegria, mas durou apenas três segundos, a segunda foi de assombro: teria na verdade furado a Terra de lado a lado?
Para se certificar alargou a greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas tinham outras proporções diferentes das que ele tinha na memória. 0 Sol também não era o mesmo, não era amarelo, era de cobre cheio de azebre e fazia barulho nos reflexos. Mas a sensação mais estranha ainda estava para vir: foi que, quando quis sair da cova, julgava que ficava em pé em cima do chão como os habitantes daquele país estrangeiro, mas a verdade é que a única maneira de poder ver as coisas naturalmente era pondo-se de pernas-para-o-ar...
Como tinha muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e teve de ir de mãos no chão e o corpo a fazer o pino, porque de pé subia-lhe o sangue à cabeça. Então, começou a ver que não tinha nada a esperar daquele país onde nem sequer se falava com a boca, falava-se com o nariz.
Vieram-lhe de uma vez todas as saudades da casa, da família e do quarto de dormir. Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele próprio quem o abrira com uma pá de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou; subiu, subiu, subiu...
Quando chegou cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa que não havia antigamente — o maior monte da Europa, feito por ele, aos poucochinhos, às pazadas de terra, uma por uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa.
Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa da família, nem a estrada que dava para a cidade, nem os arredores da cidade que faziam um belo panorama. O monte estava por cima disto tudo e de muito mais.
O homem que era muito senhor da sua vontade estava cansadíssimo por ter feito duas vezes o diâmetro da Terra. Apetecia-lhe dormir na sua querida cama, mas para isso era necessário tirar aquele monte maior da Europa, de cima da cidade, onde estava a casa da sua família. Então, foi buscar outra pá dos trabalhadores rurais e começou logo a desfazer o monte maior da Europa. Foi restituindo à Terra, uma por uma, todas as pazadas com que a tinha esburacado de lado a lado. Começavam já a aparecer as cruzes das torres, os telhados das casas, os cumes dos montes naturais, a casa da sua família, muita gente suja de terra, por ter estado soterrada, outros que ficaram aleijados, e o resto como dantes.
O homem que era muito senhor da sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas, todas. Faltavam poucas, algumas dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando já era a última pazada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer por si, sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver porque era — era o cágado.

O conto “O cágado”, de Almada Negreiros: uma leitura política

Buscando encontrar indícios, implícitos ou explícitos, na obra literária de Almada que confirmassem a sua matriz política conservadora, que o pudessem vincular à ideologia do Estado Novo (ver o meu post sobre a sua criação das gravuras incisas na Faculdade de Direito de Lisboa), deparo-me com um conto, “O Cágado”, de 1921, onde essa matriz se encontra in nuce, manifestando-se abertamente na década de 30. Este encontro determinou-me a publicá-lo (ver post seguinte) e a esboçar uma leitura política do mesmo.
Espero não estar a fazer nesta interpretação uma projeção retrospetiva do que foram os compromissos posteriores de Almada, cuja explicação se prenda com outras razões, nomeadamente o desejo de projeção da sua obra no espaço público que, naquele momento, supunha a sua disponibilização de participação nos projetos artísticos lançados no âmbito da “política do espírito” (António Ferro) do Estado Novo. 
Do ponto de vista literário, o conto em causa permite aos seus leitores uma leitura de fruição, e isso deve-se por certo ao modo como as várias sequências da narrativa se dispõem, apanhando-nos sempre de surpresa pelo inesperado das ações e dos acontecimentos do único personagem da história: “um homem muito senhor da sua vontade.”
Era possível a partir desta narrativa admirável, tão pouco lida e estudada, mas tão rica enquanto criação literária, retomá-la como matéria de outras expressões artísticas, (cinema, b.d, etc.) e analisá-la em diferentes perspetivas de interpretação, nomeadamente políticas, tanto no âmbito da nossa história enquanto país colonizador como na conjuntura mais recente em que decorreu a vida do autor. Optando por este período, considero que o conto é uma alegoria política, cujos pressupostos pressupõem uma determinada ideologia em construção que a análise procurará esboçar.
“Era uma vez um homem…” marca o início da narrativa e ficamos desde logo instalados num topos recorrente do conto tradicional. E depois este homem vê um “cágado” e de repente deslizamos para o terreno da fábula. Ora um conto-fábula implica sempre uma moralidade que se propõe e outra que se recusa.
A partir daqui, surge um choque entre duas vontades: uma forte, a de “um homem muito senhor da sua vontade”, que pretende agarrar o cágado para o trazer à família como prova de que o viu; e uma vontade fraca, a do cágado, que desconfia da maldade do homem forte e que se esconde para escapar ileso.
E é esta desproporção entre uma força bruta e uma força fraca que é o motor da história: mas o cágado é esperto, foge, enquanto o homem é pura força sem pinta de razão. Ficam os dados lançados, que o desfecho da história confirma: quando à patologia da vontade, conhecida na nosografia por hiperbulia, se acrescenta a incapacidade da razão para ponderar os prós e os contras do que se deve fazer, não é de esperar na refrega o almejado sucesso. O animal, porque age em conformidade com o perigo eminente, vai sair vencedor, escapando-se e aparecendo no fim a celebrar. Invertem-se os papéis: o homem, todo volição e sem pinta de pensamento, age como um autómato, viola a lei da sua natureza que é de ser finito e ser pensante, logo, merece castigo; o cágado, advertido, age como a sua natureza lhe indica, e nisso está a sua verdade congruente, merece a recompensa de continuar a viver.
A patologia do homem tem manifestações diversas, em várias áreas. Ora, a perseguição do cágado, que é no conto enfaticamente hiperbolizada pelo esburacamento do diâmetro da terra à cata do animal reenvia-nos para um espaço de totalidade, que é o elemento onde se afirma a dominação da totalidade social: o Estado.
O mais grave é que, de regresso ao seu lugar natural, com a Europa entupida (alusão aos escombros da I Guerra Mundial), o homem da história continua a sua azáfama interminável, nada aprendendo na descida ao Hades. Neste sentido, a catábase nada tem a ver com as que conhecemos da literatura, onde o seu alcance era purificador e revelatório como dispositivo do discurso épico.
Aqui, celebra-se o dobre de finados de toda a épica, este homem da história é um anti-herói, como é monstruoso todo o Estado que se diz ao serviço dos cidadãos mas que se encontra ao serviço da vontade de dominação dos interesses pessoais. Se for pertinente a hipótese de que o âmbito a que o conto reenvia é a história política nacional daquele período, então é o voluntarismo republicano na sua vertigem de afirmação do poder que está a ser posto em causa.
No tempo em que o autor escreveu o conto, os Estados Europeus tinham-se envolvido na I Guerra Mundial, pondo a Europa a ferro e fogo, manifestando a falência dos princípios racionais da ordem democrática em que se legitimam e erodindo a desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
 Em Portugal, no mesmo período, sabemos o que foi a incapacidade dos dirigentes republicanos para ergueram um estado onde a democracia estivesse ao serviço do desenvolvimento e da emancipação dos cidadãos.
 Neste contexto, é plausível pensar que “o homem muito senhor da sua vontade” representa alegoricamente todos quantos estão centrados na autarcia absoluta das suas vontades e que da solidão dos seus gabinetes querem submeter tudo e todos: os políticos que se reivindicam dos princípios democráticos, que não pensam de acordo com aquilo que Weber chamou a ética da responsabilidade porque pensam apenas e só de acordo com a acanhada ética da convicção.
O cágado, de marcha lenta, de couraça resistente e esperto quando está em perigo é uma alegoria do povo sofredor, resistente, capaz de usar a astúcia para se sair bem das dificuldades. Esta interpretação reforça-se se fizermos a supressão do acento à palavra “cágado”, ficando com o plebeísmo corrente em português que indica alguém que está em apuros por estar lançado numa situação de dificuldade, muitas vezes provocado por alguém que o manieta e amedronta.
Almada Negreiros esboça assim, neste conto, uma crítica a um certo exercício do poder, aquele que tem por base o individualismo dos regimes liberais, de que a República em Portugal foi um exemplo, abrindo a possibilidade de construção de outro regime (aqui ainda não nomeado), em que o homem de vontade estivesse revestido de outros predicados e em que a relação com os cágados, sempre cágados, seria diferente. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

“Quem construiu Tebas de sete portas?” Bertolt Brecht

Quem construiu Tebas de sete portas?
Nos livros estão os nomes dos reis.
Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?
E as várias vezes destruída Babilónia —
Quem é que tantas vezes a reconstruiu?
Em que casas da Lima fulgente
de oiro moraram os construtores?
Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta
a Mu­ralha da China? A grande Roma
está cheia de arcos de triunfo. Quem os levantou?
Sobre quem triunfaram os césares?
Tinha a tão cantada Bizâncio
Só palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu bramavam os
afogados pelos seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
César bateu os Gálios.
Não teria consigo um cozinheiro ao menos?
Filipe da Espanha chorou, quando a armada se afundou.
Não chorou mais ninguém?
Frederico II venceu na Guerra dos Sete Anos —
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhou o banquete da vitória?
Cada dez anos um Grande Homem.
Quem pagou as despesas?
Tantos relatos
Tantas perguntas. 
                        (Tradução de Paulo Quintela)

sábado, 2 de fevereiro de 2013

O elogio da ciência por Bernardo de Claraval (século XII)

Pela sua importância para a nossa história e cultura, é sempre estimulante sentir que a celebração do mistério de Deus por Bernardo de Claraval se acompanhou do estudo da ciência e do compromisso na transformação do mundo pelo trabalho. Este estímulo hoje deve fazer-se a partir do valor absoluto do que é humano, sem a contaminação de qualquer intuito proselitista. O que não seria o caso de Bernardo.
Alguns pensamentos soltos sobre o valor do conhecimento:
- O zelo sem ciência é prejudicial mesmo onde há empenho de prestar serviço.
- A ciência sem caridade envaidece; a caridade sem ciência, erra.
- Não é desculpável ser ignorante, quando se faz profissão de ensinar as crianças.

O compromisso com a justiça: o exemplo de Platão

A reflexão política de Platão é certamente um ponto de vista filosófico, historicamente situado, sobre os requisitos necessários ao exercício do poder político numa ordem justa. Mas conserva uma imensa fecundidade se soubermos entender o espírito que lhe subjaz e não tanto os resultados a que chegou e as soluções que propõe para alcançar aquele objetivo.
Ora o espírito que anima a reflexão política de Platão deve ainda ser o nosso: a busca racional dos princípios éticos, se prosseguidos com a intenção de a eles aderir incondicionalmente, era a sua condição básica. A esta luz, só a presença no espírito da ideia de justiça torna possível exercer o poder político de um modo justo, para o benefício da comunidade.
O trabalho filosófico de Platão centrado na política não foi pensado por ele, assim, como um exercício exclusivamente teórico, uma vez que a sua destinação se encontrava enraizada na necessidade da conjuntura política em que viveu. Por isso, na República, o seu prisioneiro liberto da caverna, onde jazia agrilhoado de pés e mãos, após atingir o mundo real, não fica aí retido na sua contemplação, mas volta de novo à caverna para anunciar  aos companheiros o que tinha visto, de modo a propiciar a sua autolibertação. Este compromisso solidário com os companheiros, aprisionados nas suas ilusões e no primarismo dos seus interesses mesquinhos, continua a ser uma exigência moral para nós, hoje.
Alain Badiou, por exemplo, realça a importância da República em função do nosso contexto filosófico, traduzindo a Ideia de Bem de Platão pela Ideia de Verdade e a de Alma pela de Sujeito, de modo a relevar que é a incorporação do Sujeito pela Verdade que torna possível a atitude ética.
O próprio Platão viveu na sua vida real a mesma exigência deste prisioneiro: fez três viagens à Sicília, a Siracusa, para ajudar a erradicar a tirania aí existente, não por meios revolucionários mas pela educação de Dinis II (filho do tirano Dinis, o Antigo) em consonância com a sua filosofia. Mas este esforço foi debalde, pondo Platão na situação de residência fixa, sem ter autorização de sair da ilha, correndo o risco de morte.
Deixo uma breve passagem da Carta VII, onde Platão descreve este seu compromisso com esta situação concreta onde imperava a injustiça:
“Um homem justo, prudente e refletido, nunca pode subestimar completamente o carácter dos homens injustos, mas não espanta nada que ele sofra o destino do hábil piloto que não ignora a ameaça da tempestade, mas não pode prever a sua violência extraordinária e inesperada e tem de afundar-se.”
Carta VII, pp. 88-9, Cartas, Platão, Editorial Estampa, 1971, Lisboa
É tempo dos políticos, banqueiros e outros, que esqueceram que a verdadeira política é de inspiração ética, começarem a ler os clássicos e daí retirarem algum ensino para que a sua pilotagem não nos conduza ao naufrágio.