sábado, 28 de setembro de 2013

Relatório sobre as alterações climáticas e a situação em Portugal



O Relatório sobre as alterações climáticas, divulgado ontem pelo organismo da ONU que tutela esta matéria, afirma não haver dúvidas de que as recentes alterações do clima se deveram à ação do Homem, figurando os combustíveis fósseis, base do desenvolvimento industrial e da emissão de gases para a atmosfera, como os principais responsáveis.
O jornal Correio da Manhã de ontem fez-se eco deste relatório, apresentando hoje uma entrevista sobre o assunto com Francisco Ferreira, membro da Quercus. A relevância deste assunto, para nós e para as gerações futuras, obriga-me a partilhar a opinião avisada daquele militante ecologista:
"O cenário previsto para Portugal é dramático"
Correio da Manhã – Qual é o cenário previsto para Portugal?
Francisco Ferreira – É dramático. Temos de apostar seriamente na adaptação às alterações climáticas. É uma zona de risco à escala mundial. Teremos menos chuvas e mais concentradas no tempo, associadas a cheias. Mais ondas de calor e mais fogos. Mais gastos no combate aos efeitos do aumento do nível do mar. Mais pobreza e menor biodiversidade.
Estamos preparados?
Temos de concretizar o plano estratégico de adaptação às alterações climáticas. O desafio é aumentar a produção e manter os níveis atuais de emissão de gases com efeito de estufa.
A que se deve a pausa no aquecimento do planeta?
Não há verdadeiramente uma pausa. Algumas personalidades nos EUA – conhecem-se quem são, têm interesses na indústria dos combustíveis fósseis – querem passar essa ideia.
Então como se explica?
É um fenómeno conhecido. O aquecimento, combinando o verificado no ar e oceano, continua sem parar. O que se assiste é a que o calor do ar à superfície está a ser absorvido pelo oceano. Em breve será o contrário.
Mesmo assim têm dúvidas...
A indústria dos combustíveis fósseis, como petróleo e carvão, é muito poderosa. Os dados, apresentados e validados por centenas de cientistas, são reconhecidos até ao nível político.
Quando é para decidir tudo falha. Porquê?
Uma coisa é reconhecer o problema. Outra é agir. Os políticos reconhecem o aquecimento global. No entanto, os efeitos do aquecimento global são a longo prazo: 30, 40 ou 80 anos. Os ciclos políticos têm uma dimensão muito diferente das alterações climáticas. Estamos muito céticos que na cimeira de Paris se chegue a um acordo.
(cf. Correio da Manhã, entrevista a Francisco Ferreira, 27 de Setembro de 2013)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

“O tempo concreto”, por António Ramos Rosa: um poema militante contra o tempo salazarista


O tempo duro
com estas unhas de pedra
este hálito podre
de órgãos esfomeados
estas quatro paredes de cinza e álcool
este rio negro correndo nas noites como um
[esgoto
O tempo magro
em que minhas mãos divididas
nitidamente separadas e caídas
ao longo dum corpo de cansaço
pedem o precipício a hecatombe clara
o acontecimento decisivo

O tempo fecundo
dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito
[de febres
repassadas no travesseiro igual das noites e dos
[dias
das ruas agrestes e pequenas da mágoa
familiar e precisa como uma esmola certa

O tempo escuro
da peste consentida do vício proclamado
da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos
da fome concreta dum sonho proibido
e do sabor amargo dum remorso invisível

O tempo ausente
dos olhos dum desejo de claras cidades
em que acenamos perdidos às soluções erguidas
com vozes bem distintas de cadáveres opressores
com gritos sufocados de problemas supostos

O tempo presente
das circunstâncias ferozes que erguem muros
[reais
dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos
das anedotas contadas num outro mundo de cafés
e das vidas dos outros sempre fracassadas

O tempo dos sonhos
sem coragem para poder vivê-los
com muralhas de mortos que não querem morrer
com razões de mais para poder viver
com uma força tão grande que temos de abafar
no fragor dos versos disfarçados

O tempo implacável
em que jurámos de pé viver até ao fim
maiores dos que nós ser todo o grito nu
pureza conquistada no seio da vida impura
um raio de sol de sangue na face devastada

O tempo das palavras
numa circulação sombria como um poço
de ecos incontrolados
de timbres inesperados
como moedas de sangue cunhadas numa noite
demasiado curta e com luar demais

O tempo impessoal
em que fingimos ter um destino qualquer
para que nos conheçam os amigos forçados
para que nós próprios nos sintamos humanos
e estes fardo de trevas esta dor sem limites
a possamos levar numa mala portátil

O tempo do silêncio
em que o riso postiço dos fregueses da vida
finge ignorá-lo enquanto soluçamos
de raiva de razão reprimida revolta
e os senhores do bom senso passeiam divertidos

O tempo da razão
(e não da fantasia)
em que os versos são soldados comprimidos
que guardam as armas dentro do coração
que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue
a tinta de escrever duma nova canção

António Ramos Rosa, “O tempo concreto”, in O grito claro, col. "A palavra, nº 1, Faro – 1958 (republicado em Viagem através de uma nebulosa, 1960)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

“Sim, quero dizer sim ao inacabado”: um poema de António Ramos Rosa na sua morte


Miró, Constelação: A Estrela da Manhã, 1940
Fui um leitor compulsivo de um dos seus livros, O Ciclo do Cavalo, pelo que tenho uma visão muito limitada da grandeza do poeta. Sentia-me arrebatado pela força sugestiva das suas palavras, que ressoavam como uma música de celebração da vida, afirmada como plenitude, liberdade e alegria sem manchas nem limites. Nessa altura, o poeta já tinha uma vasta obra publicada e comentada, nomeadamente por Eduardo Prado Coelho e por Eduardo Lourenço.
Um acaso da vida proporcionou-me (e ao meu irmão) estabelecer um contacto com Ramos Rosa, vinha ele de um café situado perto do local onde morava então, na zona do Campo Pequeno. Na conversa que se fez peripateticamente, vendo o nosso interesse pela sua poesia, convidou-nos a ir a sua casa (morava num 7º andar), para nos oferecer um dos seus livros já publicados. E já na sua casa, onde nos recebeu com toda a hospitalidade, falou-nos de algumas das suas leituras, que marcaram a sua análise ensaística e talvez a sua poesia. Lembro-me de me ter referido Heidegger, não me lembro se também Nietzsche, mas é possível.
O livro de poesia que me ofereceu foi No Calcanhar do Vento, e teve a generosidade de lhe apor a seguinte dedicatória:
“ao Vasco
e ao José Mário
na fraternidade
e na alegria
do instante deste
encontro lisboeta
António Ramos Rosa
Lisboa 11.03-88”
Para retribuir a sua imensa gratidão, celebro-o nesta hora em que já não está entre nós oferendo ao leitor o poema que encerra esta obra e que abre à evidência de uma plenitude imanente:

“Sim, quero dizer sim ao inacabado
que é o princípio de tudo
e o que não é ainda,
sim ao vazio coração que ignora
e que no silêncio preserva o sim do início,
sim a algumas palavras que são nuvens
brancas e deslizam amplas
sobre um mundo pacífico,
sim aos instrumentos simples
da cozinha,
sim à liberdade do fogo
que adensa o vigor da consciência,
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da presença,
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma profunda arquitectura íntima,
sim à pupila já madura
que se inebria das sombras das figuras,
sim à solidão quando ela é branca
e desenha a matéria cristalina,
sim às folhas que oscilam e brilham
ao subtil sopro de uma brisa,
sim ao espaço da casa, à sua música
entre o sono e a lucidez, que apazigua,
sim aos exercícios pacientes
em que a claridade pousa no vagar que a pensa,
sim à ternura no centro da clareira
tremendo como uma lâmpada sem sombra,
sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência,
sim a ti, quase monótona, quase nula
mas que és como o vento insubornável,
sim a ti, que és nada e atravessas tudo
e és o sangue secreto do poema.”

António Ramos Rosa, No Calcanhar do Vento, Centelha, 1987, pp. 79-80.