quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Oração do Papa a Maria: trecho final da Exortação “A Alegria do Evangelho



Fraumunster abbey in Zurich dates to 874, but its most famous artwork, Marc Chagall's stained-glass windows, only arrived in 1970.
Vitral de Marc Chagall, com a Virgem
 ao centro (Igreja de Fraumunster, na Suiça)
É com a súplica a Maria, mãe de Jesus, que o Papa Francisco encerra a sua Exortação apostólica “Evangelii gaudium”, dada em Roma a 24 de Novembro de 2013.
Esta oração não é fortuita pois encontra-se numa solução de continuidade com o ato de Consagração do Mundo ao Coração a Maria, ocorrida a 13 de Outubro de 2013 (e que assinalei em post nesta data). Agora, de novo, o Papa, invoca em súplica a Senhora do Mundo para que ajude a Igreja, em cada um dos seus membros, a ser sinal de alegria de Evangelho, a ser inventiva no processo da sua renovação, a ser audaciosa no seu compromisso com a justiça, preferencialmente com os pobres e com os excluídos deste mundo.
Convido à leitura da Exortação, que está online, e deixo o trecho final da oração do Papa a Maria: 

“Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa -Nova de Jesus.

Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Batista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.

Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa audácia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.

Vós, Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas,
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.

Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.

Mãe do Evangelho vivo,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Ámen. Aleluia!
(Cf. Evangelii gaudium, pp.132-3)

Ligações e contactos
Exortação apostólica "Evangelii gaudium"

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

"Trabalho sem valor”: artigo de Robert Kurz



A Alemanha é admirada em toda a parte como campeã mundial da recuperação económica. A economia prospera, o mercado de trabalho está a crescer. Mas esta bela aparência poderá ser enganadora. O crescimento mais forte do que noutros países ocidentais é apenas o reverso da queda particularmente profunda de 2009. Nesse ano, a Alemanha registou a maior contração do produto entre os países industriais desenvolvidos, quase 5 por cento. As oscilações extremas, primeiro para cima e depois para baixo, mostram apenas que a economia alemã é, em todo o mundo, a mais dependente das exportações.
A nova subida concentra-se mais do que nunca na indústria automóvel e na construção de máquinas. Os fabricantes de automóveis fornecem sobretudo carros de luxo para a China e para os EUA, enquanto as vendas na Europa continuam estagnadas. A construção de máquinas fornece numa proporção crescente a onda de investimentos com que se fez face à crise na China. Mas estes dois motores externos de crescimento são mantidos a funcionar principalmente através de enormes programas públicos e de dinheiro tornado artificialmente barato. Se a inflação, já a subir, obrigar os bancos centrais da China e dos E.U.A. a aumentos sensíveis das taxas de juros, o boom poderá desfazer-se rapidamente no ar. Os muito aclamados novos postos de trabalho nos sectores chave da exportação revelar-se-iam como "bolha de trabalho", que teria de estourar, porque o poder de compra externo necessário para o êxito das exportações não se baseava em criação de valor real. A máquina de fazer dinheiro do Estado não é mais viável do que anteriormente a máquina de fazer dinheiro do capital financeiro. 
Apesar do boom febril, na Alemanha é estreita a base do mercado de trabalho na indústria de exportação. O chauvinismo ideológico de exportador corresponde a uma pequena "aristocracia operária", enquanto o emprego precário se multiplica ampla e rapidamente no interior, sem apanhar o vento dos lucros e rendimentos da economia virada para o exterior. A redução do desemprego apresentada orgulhosamente só assenta em novos postos de trabalho a tempo inteiro, com emprego garantido, em poucos segmentos exportadores. A maior parte dos novos postos de trabalho é a prazo e paga abaixo das tabelas dos acordos coletivos. Mas, sobretudo, teve um crescimento explosivo o número de empregos de 400 euros, que em 2010 atingiu os 7,3 milhões. Cada vez mais postos de trabalho regulares são transformados em empregos desses, sendo o pagamento frequentemente inferior a metade das tabelas da contratação coletiva. E quase dois terços destes mini-empregos são ocupados por mulheres. De acordo com as leis da economia, uma conjuntura económica auto-sustentada teria de fazer subir o preço da força de trabalho em geral. O facto de, pelo contrário, a sua desvalorização continuar dramaticamente é um indício da falta de substância da retoma.
Efectivamente, grande parte do emprego precário situa-se em sectores improdutivos do ponto de vista capitalista. Eles têm de ser alimentados pela produção de mais-valia real, a qual, por sua vez, é apenas simulada; entretanto já só através da criação de dinheiro pelo Estado. O boom global de exportação assim alimentado é um evento de minoria na maior parte dos países desenvolvidos e especialmente na Alemanha.
O dinheiro barato leva a novos investimentos apenas nestes sectores, faltando na indústria, no comércio e nos serviços. Em vez disso, a inundação de dinheiro dos bancos centrais flui, como de costume, para a superstrutura financeira. O reverso do "trabalho sem valor" é uma nova bolha nos mercados globais de ações, os quais, nestas condições, já não constituem certamente qualquer indicador de desenvolvimento económico real, sendo, pelo contrário, auto-referenciais e expressão duma miragem. Está programado o próximo choque de desvalorização nos mercados financeiros, juntamente com inflação e crises da dívida pública.
 (Robert Kurz, artigo “”Arbeit ohne Wert, pub. em Newes Deulschland, em 02/05/2011, editado em www.exit-online.org.)

“Um Mundo Sem Dinheiro”: um artigo de Robert Kurz



O pensamento utópico sempre jogou com a ideia de abolir o dinheiro. Mas tal pensamento normalmente não foi longe, pois o dinheiro constitui apenas a superfície de uma determinada forma social. O dinheiro, como disse Marx, é a manifestação de uma entidade social, a saber, do "trabalho abstracto" e do valor (da valorização). Ora, quem quer abolir apenas a manifestação superficial, sem chegar ao fundo da entidade subjacente, traz mais desgraça que libertação.
Num sistema de produção de mercadorias em economia empresarial, atingido o dinheiro na sua função reguladora ou mesmo totalmente abolido, no seu lugar só pode surgir uma burocracia totalitária. Na história recente, o regime de Pol Pot tornou realidade as horríveis consequências disso; mas também os regimes desenvolvimentistas do socialismo e do capitalismo de estado disso tinham elementos.
Outras formas de abolição do dinheiro, como por exemplo os anéis de troca, não só têm que prescindir das vantagens de uma socialização em alto grau, mas também apenas podem trazer sub-rogações do dinheiro (senhas de serviço, etc.) e no fim têm de falhar, como é precisamente o caso de novo na Argentina.
De um modo geral isto tornou-se claro à medida que ainda assim se esgotava a energia utópica. Sob o domínio mundial do radicalismo económico neo-liberal, a subjectividade do dinheiro é mais incontestada que nunca, até no interior dos bairros de miséria. Mas, paradoxalmente, o próprio capitalismo começa agora a abolir o dinheiro. Não apenas no sentido superficial, tecnológico, de surgir no lugar do papel-moeda o registo escritural electrónico desmaterializado e o banco via Internet ("electronic banking"), tal como antes o papel-moeda tinha substituído os metais preciosos; mas no sentido de que, com a crise da terceira revolução industrial, cada vez mais pessoas caem em grande parte fora da economia monetária no dia-a-dia. Nas regiões mundiais desacopladas o círculo do dinheiro reduz-se dramaticamente. Assim, no interior do Brasil pode acontecer ter que se percorrer metade duma povoação até o merceeiro conseguir cambiar uma nota da quantia nunca vista de 20 euros. Metade dos sul-africanos adultos não têm conta bancária. 2.800 milhões de seres humanos, quase metade da humanidade, dispõem de menos de 2 dólares por dia.
Há muito que esta tendência alastra no Ocidente. Nos EUA cada vez mais trabalhadores a tempo inteiro caem abaixo o limiar da pobreza, ao mesmo tempo que quem paga com notas ou moedas em vez de cartão de crédito já quase é considerado um sujeito suspeito. E cá neste país é sabido que os bancos só de má vontade abrem uma conta aos destinatários da ajuda social. Em muitos países ocidentais expande-se um novo fenómeno de massas: quem não tem conta bancária, na maior parte dos casos também não tem seguro de saúde e muito menos telefone, para já não falar da Internet. Nas lojas-discount baratas há gente a fazer contas às "compras" rigorosamente ao cêntimo. No meio da economia monetária na aparência totalmente electrónica uma parte cada vez maior da sociedade "desmonetariza-se". Às gigantescas bolhas de dívidas contrapõe-se uma economia do tostão em rápido crescimento.
Este aspecto da crise do dinheiro, que na realidade é uma crise do "trabalho abstracto", se possível é esquecido no debate. Mas a administração capitalista da crise reage ao estreitamento do círculo geral do dinheiro de forma não muito diferente da dos regimes socialistas de estado e das utopias totalitárias, nomeadamente com as impertinentes exigências burocráticas às pessoas involuntariamente "desmonetarizadas". Ao mesmo tempo, as ideologias de crise racistas e anti-semitas de "dinheiro bom e honrado" para "trabalho bom e honrado" chocam-se com um clima de angústia do dinheiro, em vez de avançarem para uma crítica emancipatória do sistema. Quem teria pensado nisto: o capitalismo começa a tornar-se uma utopia negativa.
(Robert Kurz,  artigo “Eine Welt ohne Geld”, publicado em Neues Deutschland(15/10/2004), inserto na Revista online EXIT! – Crise e Crítica da Sociedade das Mercadorias