sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O conto “O cágado”, de Almada Negreiros: uma leitura política

Buscando encontrar indícios, implícitos ou explícitos, na obra literária de Almada que confirmassem a sua matriz política conservadora, que o pudessem vincular à ideologia do Estado Novo (ver o meu post sobre a sua criação das gravuras incisas na Faculdade de Direito de Lisboa), deparo-me com um conto, “O Cágado”, de 1921, onde essa matriz se encontra in nuce, manifestando-se abertamente na década de 30. Este encontro determinou-me a publicá-lo (ver post seguinte) e a esboçar uma leitura política do mesmo.
Espero não estar a fazer nesta interpretação uma projeção retrospetiva do que foram os compromissos posteriores de Almada, cuja explicação se prenda com outras razões, nomeadamente o desejo de projeção da sua obra no espaço público que, naquele momento, supunha a sua disponibilização de participação nos projetos artísticos lançados no âmbito da “política do espírito” (António Ferro) do Estado Novo. 
Do ponto de vista literário, o conto em causa permite aos seus leitores uma leitura de fruição, e isso deve-se por certo ao modo como as várias sequências da narrativa se dispõem, apanhando-nos sempre de surpresa pelo inesperado das ações e dos acontecimentos do único personagem da história: “um homem muito senhor da sua vontade.”
Era possível a partir desta narrativa admirável, tão pouco lida e estudada, mas tão rica enquanto criação literária, retomá-la como matéria de outras expressões artísticas, (cinema, b.d, etc.) e analisá-la em diferentes perspetivas de interpretação, nomeadamente políticas, tanto no âmbito da nossa história enquanto país colonizador como na conjuntura mais recente em que decorreu a vida do autor. Optando por este período, considero que o conto é uma alegoria política, cujos pressupostos pressupõem uma determinada ideologia em construção que a análise procurará esboçar.
“Era uma vez um homem…” marca o início da narrativa e ficamos desde logo instalados num topos recorrente do conto tradicional. E depois este homem vê um “cágado” e de repente deslizamos para o terreno da fábula. Ora um conto-fábula implica sempre uma moralidade que se propõe e outra que se recusa.
A partir daqui, surge um choque entre duas vontades: uma forte, a de “um homem muito senhor da sua vontade”, que pretende agarrar o cágado para o trazer à família como prova de que o viu; e uma vontade fraca, a do cágado, que desconfia da maldade do homem forte e que se esconde para escapar ileso.
E é esta desproporção entre uma força bruta e uma força fraca que é o motor da história: mas o cágado é esperto, foge, enquanto o homem é pura força sem pinta de razão. Ficam os dados lançados, que o desfecho da história confirma: quando à patologia da vontade, conhecida na nosografia por hiperbulia, se acrescenta a incapacidade da razão para ponderar os prós e os contras do que se deve fazer, não é de esperar na refrega o almejado sucesso. O animal, porque age em conformidade com o perigo eminente, vai sair vencedor, escapando-se e aparecendo no fim a celebrar. Invertem-se os papéis: o homem, todo volição e sem pinta de pensamento, age como um autómato, viola a lei da sua natureza que é de ser finito e ser pensante, logo, merece castigo; o cágado, advertido, age como a sua natureza lhe indica, e nisso está a sua verdade congruente, merece a recompensa de continuar a viver.
A patologia do homem tem manifestações diversas, em várias áreas. Ora, a perseguição do cágado, que é no conto enfaticamente hiperbolizada pelo esburacamento do diâmetro da terra à cata do animal reenvia-nos para um espaço de totalidade, que é o elemento onde se afirma a dominação da totalidade social: o Estado.
O mais grave é que, de regresso ao seu lugar natural, com a Europa entupida (alusão aos escombros da I Guerra Mundial), o homem da história continua a sua azáfama interminável, nada aprendendo na descida ao Hades. Neste sentido, a catábase nada tem a ver com as que conhecemos da literatura, onde o seu alcance era purificador e revelatório como dispositivo do discurso épico.
Aqui, celebra-se o dobre de finados de toda a épica, este homem da história é um anti-herói, como é monstruoso todo o Estado que se diz ao serviço dos cidadãos mas que se encontra ao serviço da vontade de dominação dos interesses pessoais. Se for pertinente a hipótese de que o âmbito a que o conto reenvia é a história política nacional daquele período, então é o voluntarismo republicano na sua vertigem de afirmação do poder que está a ser posto em causa.
No tempo em que o autor escreveu o conto, os Estados Europeus tinham-se envolvido na I Guerra Mundial, pondo a Europa a ferro e fogo, manifestando a falência dos princípios racionais da ordem democrática em que se legitimam e erodindo a desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
 Em Portugal, no mesmo período, sabemos o que foi a incapacidade dos dirigentes republicanos para ergueram um estado onde a democracia estivesse ao serviço do desenvolvimento e da emancipação dos cidadãos.
 Neste contexto, é plausível pensar que “o homem muito senhor da sua vontade” representa alegoricamente todos quantos estão centrados na autarcia absoluta das suas vontades e que da solidão dos seus gabinetes querem submeter tudo e todos: os políticos que se reivindicam dos princípios democráticos, que não pensam de acordo com aquilo que Weber chamou a ética da responsabilidade porque pensam apenas e só de acordo com a acanhada ética da convicção.
O cágado, de marcha lenta, de couraça resistente e esperto quando está em perigo é uma alegoria do povo sofredor, resistente, capaz de usar a astúcia para se sair bem das dificuldades. Esta interpretação reforça-se se fizermos a supressão do acento à palavra “cágado”, ficando com o plebeísmo corrente em português que indica alguém que está em apuros por estar lançado numa situação de dificuldade, muitas vezes provocado por alguém que o manieta e amedronta.
Almada Negreiros esboça assim, neste conto, uma crítica a um certo exercício do poder, aquele que tem por base o individualismo dos regimes liberais, de que a República em Portugal foi um exemplo, abrindo a possibilidade de construção de outro regime (aqui ainda não nomeado), em que o homem de vontade estivesse revestido de outros predicados e em que a relação com os cágados, sempre cágados, seria diferente. 

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