sábado, 30 de junho de 2012

Fadwa Suleiman: uma atriz desafiando o leão sírio

Tem-se destacado nas manifestações pacíficas contra o regime opressor sírio. Não ficou prisioneira do prestígio de actriz de teatro, cinema e televisão nem da sua pertença religiosa aos alauitas, que ocupam o poder. Fadwa Suleiman de todo isso abdicou para empunhar a bandeira da revolta contra a tirania, correndo todos os riscos.
A sua trajectória no teatro continha já a  semente desta atitude política.
Em 2005, foi a atriz escolhida para representar o papel de uma prostituta num teatro de Damasco, na peça "Metamorfose", um original do dramaturgo sírio Saadallah Wannous, cuja obra celebrada está traduzida em alemão. Nesta peça, uma mulher da alta sociedade divorcia-se e torna-se prostituta, enquanto o seu marido,  D. Juan abandonado, cai no engano de um mufti e torna-se sufi.
A dissidência protagonizada na peça tornou-se carne nesta mulher, que, com alguns dizem, é a Pasionária da revolução síria.
Tornou-se o símbolo vivo de todas mulheres árabes que lutam por um mundo diferente.

Tortura no mundo


Milhares de homens, mulheres e crianças aviltam nas prisões e comissariados em todo o mundo vítimas de tortura. Ignora-se o número, pois que os actos são ilegais.
Segundo o relatório da Associação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (ACAT), três novos paises emblemáticos acabam de ser referenciados pelas suas práticas: a Tunísia, o México e o Sri Lanka.
Ao contrário do que se pensa, a tortura não visa apenas os opositores políticos, atingindo potencialmente todos, sobretudo as camadas da base da pirâmide social.

Comentário

A ideologia securitária é uma complexa construção social sobretudo determinada pela necessidade, que os políticos de serviço cumprem com zelo, de garantir aos investidores as condições para que o negócio aconteça e floresça. Só isso explica o crescendo do encarceramento a nível mundial, mais marcado nos países periféricos.
Assim, a luta contra a tortura, necessária, será sempre limitada até que se  extirpem as suas causas fundamentais: o  capitalismo internacional predatório e a cumplicidade e a corrupção dos  governos locais que a ele se submetem.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A justiça e o irreparável - Desmond Tutu

Em 1994, no Simpósio Internacional Ética e o Futuro da Democracia que teve lugar em Lisboa, em 1994, Ricoeur no âmbito da sua comunicação intitulada "a crise da consciência histórica e a Europa, tematizou a patologia da memória e da tradição e da antecipação do futuro.
Este filósofo disse a certo passo o seguinte:
"Assim como há duas memórias, a memória repetição e a memória interrogativa e crítica, há duas espécies de esquecimento. (...) o de um deficit de memória activa, que é um esquecimento de fuga; mas há também um esquecimento voluntário, aparentado ao perdão e que pertence à terapêutia da vingança. Este esquecimento, cultivado com precaução, põe um termo à vingança, sem abolir a responsabilidade moral, solidária de uma culpabilidade sem fim.”
Na linha deste pensamento, lemos hoje,  no Público , uma entrevista do bispo anglicano Desmond Tutu, que teve um papel relevante no desmantelamento do Apartheid na África do Sul e seguidamente na Comissão pela Justiça e Reconciliação.

A dado passo da entrevista, à questão “perdoando aos agressores faz-se justiça às vítimas?”, responde:

“Quando um mal é cometido, o equilíbrio na comunidade é perturbado. As relações estão feridas e precisamos de algo e precisamos de algo que restaure o equilíbrio na
relação. Não estamos tanto à procura de punir, mas sarar, e vê-se. Os agressores, para serem amnistiados, tiveram de confessar em publico os actos que tinham cometido.”

Para além da bondade do pensamento do filósofo e da atitude do bispo, fica para sempre em suspenso a justiça contra o irreparável da injustiça contra as vítimas.

Quem as poderá salvar ainda? Só a fé crente pode ser uma esperança a cumprir por Aquele em que se acredita.  

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Índice de Enriquecimento Inclusivo (IWI)



A ONU lançou neste domingo, dia 17 de Junho, na conferência Rio+20 um novo índice mundial para medir a riqueza das nações, que soma o capital económico, natural e humano, e mostra que a imensa maioria dos países vive acima de seus meios ambientais.O Índice de Enriquecimento Inclusivo (IWI na sigla em inglês) é uma espécie de PIB verde destinado a refletir melhor a riqueza real dos países e a sua capacidade futura de crescimento, ao levar em consideração a disponibilidade dos recursos naturais e a educação de suas populações, entre outros fatores.
Por quanto tempo pode crescer um país se avançar apenas economicamente e perder os seus recursos naturais, ou não investir o suficiente na sua sociedade? - perguntam-se os seus criadores.
O novo indicador apresentado pela ONU atende ao objetivo número um da conferência sobre desenvolvimento sustentável: obter um acordo mundial para uma transição em direção a uma "economia verde" que preserve os recursos naturais e erradique a pobreza.
"A Rio+20 é uma oportunidade para abandonar o PIB como medida de prosperidade no século XXI", segundo o diretor do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), Achim Steiner.
A ONU apresentou um primeiro panorama nada animador do IWI mundial em 2012, para 20 países, que inclui as maiores economias emergentes e industrializadas e países em desenvolvimentos, durante um período que vai de 1990 a 2008.
Das 20 nações contempladas, 19 mostraram um forte esgotamento dos recursos naturais, sobretudo as potências emergentes e a maior economia do mundo, os Estados Unidos. Só o Japão se salvou, sendo o único que registrou avanços em seus recursos naturais.
No período estudado, o PIB do Brasil cresceu 34%, mas o seu capital natural retrocedeu 25%.
A China, a economia que mais cresce no mundo, avançou 422%  no seu PIB, mas o seu capital natural caiu 17%.
E os Estados Unidos, com um aumento de 37% do PIB nesses anos, viu cair em 20% o seu capital natural.
Levando-se em consideração os três aspectos - PIB, capital natural e humano-- dos 20 países contemplados no estudo, 14 registaram um índice de riqueza inclusivo per capita (IWI) positivo, embora só a China tenha crescido mais de 2%.

Este diagnóstico dá que pensar. Seria de esperar um compromisso internacional que o enfrentasse. O que não é expectável, dada a orientação que tem vindo a ser seguida pelos dirigentes dos países mais avançados em matéria de crescimento económico. Se a isso somarmos as alterações climáticas, ausentes nesta cimeira, julgamos que a beleza da ideia avançada pode esbarrar, para a desgraça de todos, com a indiferença e a sobranceria dos que se julgam donos do mundo.

Morte e Vida Severina: promessa por vir




O excerto de que vou esboçar um comentário breve toma por objecto uma criança recém-nascida, tema presente em Morte e Vida Severina - Auto de Natal Pernanbucano, um poema dramático em redondilha maior (septissílabo) de João Cabral de Melo Neto.  Pretende mostrar que, mesmo nos tempos minguados da vida dos homens, é sempre possível sonhar que a vida nascente é uma abertura para um mundo diferente.
Trata-se de uma peça que foca a tragédia da emigração de um sertanejo brasileiro em busca de melhor vida noutras paragens do litoral, escrita em 1955, como encomenda de um grupo teatral de S. Paulo. Afinidades com o que se vive hoje no mundo não faltam.
Para além da importância política do tema da peça, a sua beleza manifesta-se no modo como a composição se organiza. Neste sentido, é consequente com a conceção que João Cabral de Melo Neto tem da criação poética: deve partir dos temas da vida comum dos homens, ser escrita numa linguagem comum, para ser veículo de comunicação, mas salvaguardando o corpo do poema das contaminações da ideologia, o que exige inspiração e tecnicidade na escolha da palavra e na sua concatenação orgânica. 
As duas primeiras estrofes do poema, retiradas da 17ª cena, são as seguintes:

— De sua formosura/já venho dizer:
é um menino magro,/de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,/de obra de ventre de mulher.

— De sua formosura/deixai-me que diga:
é uma criança pálida,/é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,/marca de humana oficina.

Cada estrofe é constituída por 6 versos, e imediatamente se depreende que a figura de composição que organiza o poema é o paralelismo: o primeiro verso da primeira estrofe é repetido no mesmo lugar na segunda estrofe, praticamente com os mesmos lexemas, e semelhante repetição ocorre nos outros versos, mas com lexemas diferentes mas da mesma área semântica.
Esta opção pela estrutura  paralelística, com pergaminhos na nossa história literária, serve de amostragem com valor para o universo da peça no seu conjunto. Tem o desiderato esta figura de produzir não uma redundância desnecessária mas um ritmo e uma intensificação de sentido, uma ênfase, que aumenta a pregnância do efeito estético.
A rima toante recai sobre a vogal tónica do segundo e do sexto verso, na primeira estrofe, e na quarta e sexta da estrofe seguinte. 
É de notar também a oposição no plano do discurso e do sentido que se estabelece, nas duas estrofes, entre os versos três e quatro e cinco e seis. Esta oposição é igualmente representativa deste excerto, e de toda a peça, modulando a oposição fundamental vida/morte. Esta contradição tem assim um alcance metafísico, na medida em ela expressa a polaridade em que se joga o absurdo da vida, cujo pathos constitui o próprio sentido da vida.
As estrofes finais desta cena são a culminação de toda a beleza que há num recém-nascido. Vários são os lexemas a que se recorre para o efeito: árvores autóctones, ondas do mar, o dia, o caderno em que se escreve, os oásis, o vento. São imagens recorrentes que dão a ver a vida nova do recém-nascido, que dissolve no seu ato tudo o que se lhe opõe:“é belo porque corrompe/com sangue novo a anemia./Infecciona a miséria/com vida nova e sadia./-Com oásis, o deserto,/com ventos, a calmaria”.
Esta reiteração de lexemas diferentes, mas do mesmo campo semântico de afirmação da vida, tem assim um alcance cósmico e soteriológico, sendo a criança um “messias” no qual a poeta sonha a possibilidade de um mundo diferente, onde o nome Severino, com toda a carga de sentido que o habita, se eclipse.  
A última cena abre a possibilidade da vida ser diferente, mas para isso é preciso sair dos limites da poesia e assumir uma posição política que a isso conduza. Isso nos mostra a longa estrofe final, que ocupa toda esta cena, e de que respigo esta passagem:

 “eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela
esta que vê, severina”.

Dedico este breve comentário à minha filha e a todas as crianças do mundo.
Vasco Ferreira Louro Tomás

domingo, 17 de junho de 2012

A ciência como denúncia


A entidade norte-americana que apova a comercialização dos medicamentos e alimentos  (a FDA , Food and Drug Administation), incluíu na sua lista,  em 1974, o aspartame (aditivo usado na conservação dos produtos alimentares), reafirmando a sua segurança como elemento não carcinogénico numa nota, datada de 20 de abril de 2007, respondendo às evidências em contrário referenciadas pela ERF (European Ramazzini Foundation of Oncology and Environmental Sciences) (Cf. artigo) .
Foi este mais um episódio de uma controvérsia que se arrastou desde o início da aprovação do produto, que opôs a ciência (psiquiatras, biólogos, toxicologistas) aos interesses instalados das empresas multinacionais ligadas à produção alimentar, que contaram com a conivência das autoridades sanitárias dos principais países.
Com efeito, constata-se a existência de uma ligação orgânica entre os dirigentes da FDA  e a indústria química ligada à produção da aspartame (cf. June 17, 2012, The Huffington  Post, artigo de Robbie Gennet, Donald Rumsfeld and the Strange History of Aspartame, comprova o lugar cimeiro que Rumsfeld teve na construção e controlo da teia de ocultação).
Por outro lado, as conclusões que afirmam a segurança do aditivo resultam todas de laboratórios que são financiadas por quem encomenda o trabalho, distorcendo a verdade da pesquisa.
É um triste e trágico exemplo que comprova a necessidade de criação de laboratórios independentes dos interesses instalados, que permita encontrar a verdade e divulgá-la pela opinião pública, de modo a que a decisão das autoridades sanitárias seja transparente e sirva o interesse dos cidadãos.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Gottfried Benn: Campo dos infelizes

CAMPO DOS INFELIZES

Farto da minha busca de ilhas,
rebanhos mudos, verde morto,
quero ser margem, ser baía,
de belos barcos ser um porto.

A minha praia quer sentir-se
pisada a vivo com pés quentes;
queixa-se a fonte a oferecer-se,
quer refrescar sedes ardentes.

E tudo quer a sangue estranho
subir, ir afogar-se a esmo,
até um outro ardor de vida,
nada ficar quer em si mesmo.

(trad.Vasco Graça Moura)

Gottfried Benn: a potência da palavra


"A palavra é o centro criador do espírito, centro no qual enterra suas raízes e, direi ainda mais, as enterra no espírito da própria nação: quadros, estátuas, sonatas, sinfonias são internacionais: a poesia, nunca.

Podemos definir a poesia como o intraduzível. A consciência prolifera nas palavras; a consciência transcende as palavras. 'Esquecer': que significam essas letras? Nada, nada que se possa compreender.

Mas a consciência ressoa nessas letras, através delas se dirige a um determinado destino: e essas letras, colocadas uma ao lado da outra, ressoam acústica e emotivamente dentro de nós. É por isto que oublier não é jamais esquecer.

Nem never more com suas duas sílabas iniciais graves e fechadas seguidas do taciturno e fluente more (no qual ressoa para nós 'das Moor' e para os franceses 'la Mort') é nimmermehr (jamais), 'never more' é mais belo. As palavras marcam mais profundamente que seu próprio conteúdo. Por um lado são espírito, por outro possuem a essencialidade das coisas da natureza."

BENN, Gottfried. Problemas da lírica. Trad. Fábio Weitraub. Rio de Janeiro, Cadernos Rioarte, Ano I, n.3, 1985, p.8.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Didascália partida: um postal para Hegel


A velha canção, que trauteei no post anterior, afinal – apercebi-me post factum – não é mais do que uma breve paráfrase do que Hegel escreveu, que é uma paráfrase de outra e … caímos na indeterminação da proveniência: “depois da criação da natureza o homem aparece e opõe-se ao mundo natural; ele é o ser que se eleva num universo segundo.” Filósofo cristão feliz, Hegel soube amar a vida e, pelo conceito, levar de vencida a morte.

É ainda possível que essa velha canção nos anime, nos abrace e se torne o sangue das nossas veias, quando a cultura nos tornou mais lúcidos, mais desconfiados das grandes promessas, e a história que está atrás de nós já não é um espelho onde seja possível olharmo-nos e reconhecermo-nos, tal a barbárie que a habita? Terá sido um sonho feliz que se tornou entretanto um pesadelo, que não se esquece porque se imprimiu na carne, mas que gostaríamos de curar por uma qualquer medicina da alma? Com efeito, se somos tão grandiosos como afirmam as narrativas da fundação do mundo, embora sujeitos ao pecado, como é possível que tenhamos descido em queda sem fim? Dirá o crente que foi por não se ter seguido sempre em linha reta, como determinam as injunções divinas.

Pois bem, como seria possível isso se tudo na nossa experiência pessoal e relacional é complexo, emaranhado, feito de recuos e de avanços, sempre as nossas ações comportam efeitos imprevisíveis, perversos tantas vezes? Claro que Hegel, que era um apologeta esperto, desculpou a coisa pelas manhas da razão, pondo assim ordem no som e na fúria da vida.
Pode ser que Hegel, ainda que com boas intenções e como muito arrojo especulativo, tocado por algum excesso de cerveja bávara que muito apreciava ou por sob o efeito anestésico do desvairo provocado por alguma Valquíria tenha sido acometido por algum delírio persistente, que travestiu sob a forma da Odisseia da Ideia Absoluta, alegorese de Napoleão a cavalo. Mas parece que sempre gozou de boa saúde, talvez gostasse de ser admirado, e podia sê-lo com todo o mérito.

Podemos ainda pensar que Beckett ou Gottfried Benn são mais sensatos do que Hegel, porque são mais sensíveis ao sofrimento dos homens, e nesse ponto perde Hegel.
A velha canção que trauteei talvez seja ainda boa, ou útil, ajuda-nos a trabalhar sem descanso na melhoria das nossas vidas e nas dos outros. É um alento, para o crente uma fé e uma esperança. Mas para todos resta – e nisso estamos todos no mesmo barco e na iminência do mesmo naufrágio – o mistério da noite sem fim da nossa ignorância e incerteza em relação ao ser.

Apetece perguntar, é a velha questão de Leibniz nunca respondida (exceto que reconheçamos autoridade ao que se diz na Bíblia): “porquê o ser e não antes o nada?” Há que concluir com Heidegger: “Nur noch ein Gott Kann uns retten”.

Com saudades do bonacheirão Hegel, seu incondicional admirador, Vasco

terça-feira, 12 de junho de 2012

O significante flutuante na teologia da criação


Proposição 1 . A descoberta renovada de significações cognitivas ou práticas (éticas, jurídicas, políticas) é uma tarefa imposta ao homem pelo significante flutuante (que os israelitas chamaram Deus) desde a criação do mundo.

O significante flutuante na sua gratuitidade tudo dispôs para que o homem pusesse em marcha o processo histórico de descobrir e criar significados, paulatinamente. Não indicou término, nesse momento do nascimento do homem.
Dotação de recursos pródiga a proteger e a desenvolver: vida, sabedoria, linguagem, relação, felicidade. E porque a oferta representava um desafio enorme, por isso se acompanhava de uma injunção, de alcance pedagógico, que indicava o que aproxima ou afasta do desígnio comunicado.  
Traduzindo a abstração, fiquemos com um resumo da história tal como a Bíblia no-la apresenta, no Génesis.
Este livro inicia-se com duas narrativas da criação do mundo  por Deus, a primeira redigida no séc. VI A.C (autor P), a segunda mais antiga (autor J).
 Complementares na construção de uma unidade, são diferentes em determinados aspetos: a primeira narrativa, mais teológica, reflexiva e totalizante, apresenta a sublimidade do homem no quadro da criação; a segundo, mais existencial, mais imagético, centra-se na condição livre do homem no mundo, que o põe à prova da experiência do mal. Esbocemos uma síntese do que aí se diz.
É pela sua Palavra que vão surgindo, a partir de um fundo indeterminado e informe (tohu-bohu), as junção várias ordens de seres até ao homem, cúspide da Criação. 
A benevolência de Deus é permanentemente reiterada m relação a todo o criado, pois Deus deseja que tudo aumente a sua potência de ser e seja feliz, reconhecendo reiteradamente que toda a obra saída das suas mãos é boa em si mesma.
O homem surge na sua diferença genérica, homem (ish) e mulher (isha), que comunga duma mesma identidade específica, duma mesma semelhança ontológica, cuja natureza os assemelha aos Elohim (seres da corte celeste, sábios e bons, segundo a crença israelita).
Uma vez colocado no mundo, é a sua morada de cujos bens se pode apropriar para satisfazer as suas necessidades, mas é seu dever aumentar os seus recursos, protegendo-o do que o pode danificar e desvelando o sentido do mundo, dando o nome aos animais.
 Ora, o ato de nomear implica designar o homem como ser que se torna palavra, que se faz discurso e frase. Ser de linguagem, o homem comunica com o semelhante, concorda ou discorda, argumenta, celebra contratos, pouco a pouco vai-se elevando-se a patamares de mais rica significação. O pensamento é inerente a esta dimensão da linguagem, participando ambos como faces da mesma moeda na construção da significação e do conhecimento. Por isso, só no quadro da socialidade a significação adequada e o conhecimento verdadeiro têm garantia.
A injunção divina que proíbe o consumo do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal tematiza, de modo alegórico, a questão do conhecimento prático, da condução da vida, centrando-se nos assuntos da vida da relação que, por não serem consensuais, podem gerar conflitos que atingem o interesse ou a vida dos próprios.
No direito israelita era exigido o depoimento de testemunhas, necessárias para o veredicto juiz, no julgamento de um homicídio. Eram também requeridas na celebração de contratos, bastando a atestação dos contraentes nos mais simples.
Assim, o conhecimento da verdade aparece ligado a atestação intelectiva, à elaboração de uma resposta para uma questão. A própria proximidade entre a palavra testemunho (êdout) e a palavra conhecimento( DaÂt),que derivam da mesma palavra, (âd),o advérbio “até a”( que imprime a ideia de movimento para), dá força ao argumento.

É assim este aspeto jurídico que é o fundamento do tabu bíblico de comer o fruto da árvore do Bem e do Mal (Gn2, 17), devendo interpretar-se a expressão “ fruto”como a boa decisão e “árvore”, com toda a sua ramificação, como a diversidade dos pontos de vista sobre a matéria a esclarecer”. “Comer” (okla) significa que o conhecimento em vez de prosseguir no seu devir até ao apuramento da verdade, se fixa, se paralisa num momento, fascinado pelo que está alcançado.
E esse encantamento, quando a mulher viu que o fruto era bom para o apetite e formoso para a vista, comendo-o e dando-o a comer ao marido (Gn3, 6) paralisou o conhecimento na sensorialidade do objeto, deixando-se arrastar para a sua órbita. Aí, dá-se um regresso ao estado pré-humano.

Quando se pensa que o conhecimento é uma conquista de indivíduo solitário, seu autor e beneficiário, entra-se em contradição com a natureza do próprio desígnio para o qual Deus fez o homem: procurar em parceria com os outros o discernimento do que é justo e bom. E a consequência para o indivíduo, que perde as amarras que o ligam aos outros (e a Deus), só pode ser a sua queda para fora da socialidade: regressão ao pré-humano, à inumanidade, que é o nada do homem, a morte.

sábado, 9 de junho de 2012

Construção histórica da significação



Axioma 1: O “significante flutuante” (Lévi-Strauss) ocupa na ordem política uma função essencial de transgressão, de heterodoxia, na medida em que a lei que regula a distribuição dos signos impostos pelos interesses do poder ou pelos usos da sociedade está sempre em atraso relativamente ao carácter totalizante daquele.

O antropólogo Marcel Mauss estabeleceu, no seu “Ensaio sobre a Dádiva”, (1924) que as sociedades humanas se estruturam no princípio da dádiva, que é a obrigação de dar, de receber e de retribuir, tanto no plano económico (bens e mulheres) como no da linguagem (informações).  
Esta troca faz-se através da linguagem, é de natureza simbólica, sendo esta a instituinte da sociedade. A busca do elemento que explica o princípio da dádiva foi buscá-lo Mauss à noção polinésia de mana.
Lévi-Strauss interpreta o mana em termos semiológicos, como um significante flutuante, puro produto do pensamento, indeterminado, um excesso de significação que o homem ignora e que vem progressivamente encontrando, nomeadamente pela ciência.  
Esta inadequação entre o significante e o significado é um juízo sintético a priori de todas as culturas, uma condição transcendental destas,  que explica o seu funcionamento e as suas transformações - da palavra mítica , da magia do xamã, da palavra do profeta, da criação artística, da descoberta científica , do seu sistema económico e político.  
E sempre que a complementaridade entre o significante-significado se esbateu, triunfou o instituído, que se formalizou nos vários verbiários, coletes de forças que, com pretensões totalizantes, confundiram a verdade com uma sua configuração determinada. Exemplos não faltam: na filosofia, na dogmática religiosa, na ideologias da ciência, da técnica ou doo mercado, as novas e nefastas idolatrias do mundo atual.
A compreensão da dádiva como o sistema de trocas básico da vida social permite romper com o modelo dicotómico típico da modernidade, pelo qual a sociedade ou seria fruto de uma ação planificadora do Estado ou do movimento fluente do mercado. Para o que é necessário abrir campos de dissidência e de heterogeneidade nos vários planos da vida cultural, da economia e da política.
Assim, o significante vazio dos nossos desejos pode ser complementado com a invenção e a descoberta de novas significações – que fazem aumentar a potência das nossas vidas, em liberdade. Mas estas significações devem conduzir a uma materialização prática (política) de uma sociedade mais justa e fraterna.


Verbiário Volátil


Verbiário é o nome de um manual que dita as regras da conjugação verbal e da boa construção gramatical, no latim e em algumas línguas românicas (como o italiano e o romeno). Esta palavra passou também a designar, no português arcaico, o manual das orações do clérigo, ajuda para este voar até ao céu.

Para além desta peripécia da palavra, ela interessa-me pela sua carga polissémica – tem dentro dela o sema latino verbum, a palavra (pois é esta a sua a principal substância ) e diário, que dá conta da experiência de cada dia. E interessa-me também por trazer de volta à vida um lexema, que caiu em desuso na nossa língua, e por este reenviar para a filiação latina da nossa cultura.

Volátil é o que sobe nas nuvens, como um bailarino, porque tudo o que nele se diga tem uma solidez que se pode dissolver em fumo, e pode planar até ao desastre por se aventurar a não ponderar as risco das condições do voo, falhar, por imperícia, o manuseio da equipagem ou por se aventurar a espaços siderais muito longínquos.

Se conseguir articular o discurso e elevá-lo ao plano do pensamento terei alcançado o objetivo. O escrutínio livre do comentário dos leitores é um elemento fundamental àquele desiderato.

De todos os que, no ato da escrita, se elevaram ao plano do pensamento, criando conceitos, perceptos ou afetos (Deleuze), sinto-me discípulo. A comensalidade habituar-me-á a escutar o canto estrídulo e prolongado, acridoce, da ave sagrada, que me ajudará  a dissolver o encantamento do canto das sereias que andam pelo mundo.   

 Marcel Mauss, Lévi-Strauss, Cornelius Castoriadis, Emmanuel Lévinas, et alli  são alguns mestres. Dele  respigarei uma axiomática, que funcionará como pano de fundo do discurso a construir, o meu verbário de bolso.