segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A Tourada: clarificação para um debate

Embora não disponha de dados estatísticos sobre as representações e as atitudes por camadas sociais e por regiões geográficas, ao longo dos últimos anos, em relação à tourada, verifico que hoje, excetuando o Ribatejo e o Alentejo, ela é um tema fraturante: de um lado, os aficionados, seus adeptos fervorosos; do outro lado, os seus opositores exaltados; ao centro, a nebulosa dos restantes, cuja aparente indiferença pode ser talvez uma enorme dúvida afivelada.   
O dilema que na oposição das posições se apresenta ao pensamento e à ação parece não ter saída, exceto optando por um dos lados da barricada, com exclusão do outro.
É preciso elevar a questão ao plano do pensamento, distinguindo os seus vários planos (o estético e o ético), valorando o que é justo em cada qual, hierarquizando as razões, enfim preparando uma decisão consciente e responsável sobre o objeto em análise.
Para tal, interessa percorrer o conjunto das razões de uns e de outros, em ordem a avaliar a sua substância e os seus limites.
O argumentário dos aficionados da tourada é pertinente nas suas razões.
A ancestralidade da tourada, que se manifestou nas culturas mediterrânicas desde um período pré-cristão e que se foi mantendo com altos e baixos ao longo da história, sobretudo nos países ibéricos até aos nossos dias, é a mostra de que o seu valor intrínseco desafia a voragem do tempo.
Nos últimos dois séculos, a decantação estética da tourada foi-se operando, formalizando-se o vestuário do cavaleiro (ao jeito da indumentária da corte francesa de Luís XV) e dos forcados (como o que vestiam os rapazes no séc. XIX), ajaezando-se os cavalos, ritualizando-se todo o teatro da ação do espetáculo.
Neste quadro, decorre a práxis artística do cavaleiro e forcados, fruto de uma longa aprendizagem e com exigências próprias (destreza, domínio, sagacidade, coragem) e cuja finalidade visa alcançar na brega a vitória sobre o touro, o qual simboliza a energia e a força telúricas.
Há neste confronto do cavaleiro com o animal uma significação antropológica funda: se o homem não vence a natureza não se afirma na sua humanidade e acaba por ficar prisioneiro da sua própria animalidade.
É preciso assim que o cavaleiro corra o perigo, mesmo mortal, expondo-se ao insucesso da sua empresa, sendo necessário o aprimoramento da sua arte para que por toda a praça soe o clamor dos olés ululantes, ritmados pelas palmas e pela emoção arrebatada da multidão.

Esta matriz cultural da tourada ficou incólume com os tempos modernos, pois também estes assentaram numa conceção antropocêntrica em que o homem, vértice da pirâmide cósmica, deve tornar-se dono e senhor da natureza. 
Contudo, assistimos hoje à falência desta grande metanarrativa da soberania do homem sobre a natureza no seu conjunto, com a descoberta dos efeitos perversos ( o desastre ambiental e o esgotamento dos recursos naturais) em larga escala da nossa intervenção, mediatizada pelas tecnociências, invertendo o projeto de emancipação que por esta se prosseguia.
A crise ecológica dos séculos XX e XXI foi a consequência direta da desproporção enorme entre a vastidão do conhecimento existente e a estreiteza do juízo moral, tendo sido a distinção facto-valor, além da herança filosófica do cartesianismo, as principais raízes teóricas daquela crise.
A associação destas duas razões conduziu a uma interpretação errónea do sistema de sustentação da vida, mas é hoje possível estabelecer epistemologicamente, partindo da física contemporânea, das ciências da vida e sobretudo da ecologia, uma interpretação adequada da natureza, em virtude de nenhuma ciência de per si estar preparada para lidar com a questão.
As ciências biológicas (bioquímica evolucionista e ecologia), debruçando-se sobre níveis de organização mais avançados do que os estudados pela física, acabam por revelar a existência de funções inerentes a toda a forma de vida. Tratando-se de funções da vida, o juízo que as expressa é necessariamente de valor, uma vez que a descrição do facto se acompanha de procedimentos de interpretação e de decisão.
Quer as formas de vida na sua riqueza múltipla, quer as funções vitais manifestam assim, pela sua simples presença, independente da subjetividade humana, determinados valores naturais, que são da espécie do senso comum e aproximadamente universais às culturas, ou que se tornam acessíveis a nós pela cultura científica, através de lentes e experiências.
Mas estando o valor antes de nós, isso não significa que não se tenha feito uma evolução programática até chegar a ele, sendo assim um acontecimento que a história natural produziu. Deste modo, nem tudo na natureza (cujas leis últimas desconhecemos) é valor, pois os valores imediatamente experienciados podiam regressar a alguma base não valorável a partir da qual emergiram.
Em que consiste então a natureza do valor natural?
Consiste num duplo movimento em que o sujeito que contempla uma cena envolvente nela se internaliza e em que esta cena se insinua dentro daquele. Mas, tal avaliação é uma associação e o sócio-objectivo em posição livre não pode ordenar o valor sobre o sócio-subjectivo se não tiver nada para oferecer.
Trata-se agora de um modelo ecocêntrico, que reconhece a consciência humana como valor (relativamente às formas precedentes), mas fá-la entrar para dentro da realeza do valor natural objetivo.
Deste modo, a natureza, nos seus múltiplos níveis de organização, manifesta-nos muitas possibilidades de avaliação e desafia-nos a responder como artistas, poetas e filósofos, como avaliadores, embora a nossa resposta seja insuficiente, mas pode ser melhorada pelo recurso à educação.
O modo como o valor se manifesta é sempre sob a forma de uma imposição que constrange e enobrece o papel que nós humanos somos chamados a desempenhar ao ficarmos obrigados categoricamente ao respeito dos direitos intrínsecos da Terra e do mundo animal no seu conjunto.
Neste novo modo de pensar, emerge uma ética objetivamente fundada na natureza, no horizonte definido pela ecologia, que abrange todo o mundo animal e dando lugar ao surgimento de uma ética animal, que comporta implicações nas nossas práticas costumeiras e que exige novos posicionamentos jurídicos e teológicos.
E voltamos ao dilema referido: manter a estética da tourada à custa da ética animal ou optar por esta em detrimento daquela? Não vejo que seja possível o consenso.
Que fazer neste quadro conflitual?
Pensar que para além das razões que apresentei, outras já foram avançadas por grandes pensadores do passado, que relacionaram a ação que temos com os animais com o nosso caráter. Dois exemplos: 
“As nossas obrigações com os animais são apenas obrigações indiretas com a humanidade. A natureza animal possui analogias com a natureza humana, e ao cumprir com as nossas obrigações para com os animais em relação às manifestações da natureza humana, nós indiretamente estamos cumprindo as nossas obrigações com a humanidade. Podemos julgar o coração de um homem pelo modo como trata os animais.” (Immanuel Kant).
"A compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, e pode ser seguramente afirmado que quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem." (Arthur Schopenhauer)
E persuadir apresentando as melhores razões; lutar pelo que consideramos mais racional; apresentar alternativas em que a arte encenada na tourada possa ser transmutada sem agravo dos animais; preservar a arte do toureio sob a forma do registo museográfico, enfim.
Nós na Caldas já tivemos um Museu da Equitação e Toureio, obra de Paulino Montez, que a incúria deixou estragar em grande parte. Não será altura, conservando a memória das duas últimas touradas (15 e 25 de Agosto último), de alguém (a Câmara?...) começar a pensar nisso a sério?

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