quinta-feira, 2 de maio de 2013

"Tais pessoas (...) que têm dinheiro”, La Bruyère


La Bruyère (1645-1696) teve uma formação jurídica mas cedo sentiu a vocação de escritor, só publicando cerca de 20 anos mais tarde, em 1688, a obra “Os Caracteres”. Como o título indica, ela faz a descrição dos costumes da sociedade em que viveu (intrigas palacianas, os vícios do sistema judicial, o luxo insultuoso dos arrivistas, os impostores, a riqueza e a pobreza, os horrores da guerra, etc.), a partir de um ângulo de observação privilegiado: a corte francesa ao tempo de Luís XIV, com a qual esteve em contacto intenso. O seu objetivo é claro: ser o juiz de uma ordem política transviada em relação à exigência do Evangelho cristão, protestando contra a injustiça. Como homem de letras, considera que a escrita se encontra ao serviço do bem público, sendo por isso que, comparando os “grandes” ao “povo”, proclama: “eu quero ser povo” (cf. “Os grandes”,Observação 25, p. 232, na obra que refiro no fim).

La Bruyère é um exemplo de verticalidade moral, que nos ajuda a ver que há sempre, no meio de um mundo sem alma, quem saiba estar na resistência e na denúncia. O excerto sobre "a ganância do dinheiro", que transcrevo, é uma marca dessa atitude.
 
"Há almas sujas, forjadas de barro e de lixo, enamoradas do ganho e do interesse, assim como as belas almas o são da glória e da virtude; capazes de uma única volúpia, a de adquirir ou de não perder; curiosas e ávidas do último décimo; unicamente ocupadas com os seus devedores; sempre inquietas sobre a descida ou a desvalorização da moeda; mergulhadas e como abismadas nos seus contratos, nos seus títulos e pergaminhos. Tais pessoas não são nem parentes, nem amigos, nem cidadãos, nem cristãos, nem talvez homens: elas têm dinheiro."
 
Traduzido de “Os bens de fortuna”, Observação 57, da obra de La Bruyère, Les caracteres, Ed. Garnier- Flamarion, Paris, 1965, pp. 181-2.

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