sábado, 18 de janeiro de 2014

"Escândalo na França": artigo de Paul Krugman

“Eu não presto muita atenção a François Hollande, o presidente da França, desde que ficou claro que ele não romperia com a ortodoxia de políticas de austeridade, destrutivas da Europa. Mas agora ele fez algo realmente escandaloso.
É claro que não estou a falar de seu suposto caso com uma atriz, que, mesmo se verdadeiro, não é surpreendente (ei, trata-se da França) nem perturbador. Não, o que é chocante é ele ter abraçado as doutrinas económicas desacreditadas da direita. É um lembrete de que os apuros económicos da Europa não podem ser atribuídos exclusivamente às más ideias da direita. Sim, os conservadores equivocados e insensíveis estão a promover as políticas, mas eles são encorajados e autorizados por políticos covardes e trapalhões da esquerda moderada.
No momento, a Europa parece estar a sair da sua recessão dupla, estando a crescer um pouco. Mas esse ligeiro crescimento ocorre após anos de desempenho desastroso. Quão desastroso? Considere: em 1936, a sete anos e meio da Grande Depressão, grande parte da Europa estava a crescer rapidamente, com o PIB real per capita a atingir constantemente novos pontos altos. Em comparação, o PIB per capital real europeu atualmente ainda está bem abaixo de seu pico em 2007 – e a crescer lentamente, na melhor das hipóteses.
Ter um desempenho pior do que na Grande Depressão é, alguém poderia dizer, um feito notável. Como é que os europeus conseguiram isso? Bem, nos anos 30, a maioria dos países europeus acabou por abandonar a ortodoxia económica: eles abandonaram o padrão ouro; eles pararam de tentar equilibrar os seus orçamentos; e alguns deles começaram a reforçar as suas forças armadas, o que teve o efeito colateral de fornecer estímulo económico. O resultado foi uma forte recuperação de 1933 em diante.
A Europa moderna é um lugar muito melhor, moral, politicamente e em termos humanos. Um compromisso compartilhado com a democracia promoveu uma paz durável; as redes de bem-estar social limitaram o sofrimento do desemprego elevado; uma ação coordenada conteve a ameaça do colapso financeiro. Infelizmente, o sucesso do continente em evitar o desastre teve o efeito colateral de permitir aos governos agarrarem-se a políticas ortodoxas. Ninguém abandonou o Euro, apesar de ser um colete de força monetário. Sem a necessidade de expandir os gastos militares, ninguém rompeu com a austeridade fiscal. Em todo o lado se está a supor ser segura tal orientação, responsável – e a crise económica persiste.
Nesse cenário deprimido e deprimente, a França não se está a sair particularmente mal. Ela, obviamente, está atrás da Alemanha, que é escorada no seu formidável setor de exportação. Mas o desempenho francês é melhor do que o da maioria dos demais países europeus. E não estou a falar apenas dos países com crise da dívida. O crescimento francês ultrapassou até mesmo o de pilares da ortodoxia, como a Finlândia e a Holanda.
É verdade que os dados mais recentes mostram que a França está a fracassar em compartilhar a melhoria geral da Europa. A maioria dos observadores, incluindo o Fundo Monetário Internacional, atribui essa recente fraqueza, em grande parte, às políticas de austeridade. Mas agora Hollande anunciou os seus planos para uma mudança de curso da França – e é duro não sentir uma sensação de desespero.
Para Hollande, ao anunciar a sua intenção de reduzir impostos das empresas e reduzir gastos (não especificados) para compensar o custo, declarou: "É no lado da oferta que precisamos agir"; e ainda declarou que "a oferta na verdade cria procura".
Ai, ai! Isso repete, quase palavra por palavra, a falácia há muito desmentida, conhecida como Lei de Say – a proposição de que quedas gerais na procura não podem acontecer, porque as pessoas precisam gastar o seu rendimento em algo. Isso não é verdade e não é realmente verdade de modo prático no início de 2014. Todas as evidências dizem que a França está inundada de recursos produtivos, tanto de trabalho quanto de capital, que estão ociosos porque a procura é inadequada. Como prova, basta apenas olhar para a inflação, que está a cair rapidamente. Na verdade, tanto a França quanto a Europa como um todo estão a chegar perigosamente perto de uma deflação ao estilo do Japão.”
Então qual é a importância do fato de Hollande, ainda mais neste momento, adotar essa doutrina desacreditada?
Como eu disse, é um sinal da desventura do centro-esquerda europeu. Por quatro anos, a Europa tem estado possuída por uma febre de austeridade, com resultados em grande parte desastrosos; diz muito o fato da leve melhoria atual estar a ser saudada como se fosse um triunfo político. Diante das dificuldades que essas políticas infligiram, seria possível esperar que os políticos de esquerda defendessem fortemente uma mudança de curso. Mas, em toda parte na Europa, o centro-esquerda ofereceu (como no Reino Unido, por exemplo), na melhor das hipóteses, críticas fracas e sem entusiasmo, e frequentemente apenas se submeteu servilmente.
Quando Hollande se tornou líder da segunda maior economia do Euro, alguns de nós esperavam que ele poderia erguer-se contra isso. Em vez disso, ele caiu na submissão habitual – que agora se transformou em colapso intelectual. E a segunda depressão da Europa prossegue.”

Artigo de Paul Krugman, traduzido em Português e publ. no NYT de 16/01/2014 Scandal in France http://www.nytimes.com/2014/01/17/opinion/krugman-scandal-in-france.html?_r=0

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