sexta-feira, 13 de junho de 2014

O judaísmo sob acusação na prédica de S. António de Lisboa

S. António de Lisboa (ou de Pádua, para os italianos) é santo de devoção popular não apenas no nosso meio, mas noutros lugares. A qualidade da sua prosa e do seu pensamento mereceriam outra atenção, não apenas dos leitores (se houvesse tradução da língua em que escrevia, o latim medieval) mas também dos estudiosos.
Sobre este aspeto do seu pensamento, profundamente inserido no quadro da mentalidade católica então instituída e do seu modo de interpretar a Escritura (a doutrina dos quatro sentidos), pretendo chamar a atenção para a visão antonina do judaísmo.
No sermão da Ressurreição do Senhor, proferido por volta de 1230, o doutor da igreja parte da citação bíblica “a amendoeira florirá, o gafanhoto engordará e a alcaparra dispersar-se-á” (Eccl. 12, 5), para explicitar os vários sentidos que aí se encerram: o alegórico, o moral e o anagógico.
Quando esclarece o sentido alegórico da expressão (isto é, a ideia universal para a qual a palavra reenvia) da expressão, o tema do judaísmo vem à tona. Nestes termos:
“no gafanhoto é refigurada a igreja primitiva que, com as flores da ressurreição do Senhor, aumenta e enche-se de alegria maravilhosa. (…) Quanto mais a igreja se aumentava tanto mais a sinagoga se desagregava.(…)
“A casa de David é a igreja; a casa de Saúl, que se interpreta “aquele que abusa”, refigura a sinagoga, a qual, tendo abusado dos dons especiais de Deus, recebeu o libelo do repúdio e do abandono e abandonou o tálamo do esposo legítimo.”
Sabemos que este modo de pensar era o padrão dominante, conforme ao que ficou estabelecido no IV Concílio de Latrão (1215), que consagrou uma série de medidas antijudaicas. E este “ovo da serpente” era, afinal, a legitimação ideológica ao processo de ostracização dos judeus que estava em marcha.
Não sei se, no contexto de então, para quem estava tão comprometido com a igreja dominante, era possível pensar de outro modo. Mas sei que a irrupção da consciência de si como indivíduo, capaz de pensar por si próprio sem subordinação às cangas da instituição, ainda estava na latência. E se é assim, tenho muita pena da cegueira imposta a cada um de nós pela nossa condição histórica, que nos turva a lucidez para ver mais longe e mais alto e nos torna coniventes, talvez involuntariamente, dos crimes que alimentam a história.

PS: este ajuste de contas com o Santo estava por fazer, desde há algum tempo! A ocasião agora tem a ver com os festejos antoninos de ontem, em Lisboa. Penso que é necessário ir mais longe e compreender o homem na sua historicidade, no que fez, no que disse, no que escreveu, de modo a ir ao encontro da verdade da sua vida real.

Sem comentários:

Enviar um comentário