domingo, 21 de abril de 2013

Coplas para um 25 de Abril por vir, pela mão de Lídia Jorge


O 25 de Abril de 1974 é o acontecimento referencial em torno do qual se desenvolve toda a narrativa O dia dos prodígios de Lídia Jorge, que foi publicado em 1980 mas foi sendo escrito durante o período de 1975-76.
O espaço da ação é uma aldeia imaginária do Algarve – Vilamaninhos -, isolada do mundo, vivendo os seus habitantes da agricultura e, por isso, propensos a um imaginário mágico específico, onde o sonho e o canto servem de compensação à precaridade das condições onde a vida decorre.
No romance, os personagens vão narrando nos seus encontros, de modo dir-se-ia espontâneo, as suas vivências, expetativas e apreciações acerca do mundo onde vivem e do externo, que lhes anuncia pela rádio o episódio libertador de uma Revolução em Lisboa.
Esta polifonia de vozes dissonantes tem, contudo, um bordão subjacente: todos desejam uma vida diferente. Mas revelam-se atitudes diferentes face ao acontecimento de Abril: Maria Rebôla acredita que, pelo país, correm já o leite e o mel tão sonhados em abundância (cf. pp. 168-9); o seu tio, o velho José Jorge Júnior, manifesta com veemência a sua descrença, invetivando a atitude dos que assim pensam, pois estão à espera que a resposta para os seus problemas lhes caia do céu, instalando-se numa passividade que só lhes traz prejuízos, até materiais (cf. pp. 164-6); mas há quem teime em manter viva a esperança de um porvir diferente, mesmo quando a utopia de Abril desaba aos olhos de todos e os ameaça de mortal desânimo.  É esta a atitude do poeta-músico Macário, que, através das coplas do seu canto, continua a alimentar em permanência o desejo de “um outro mundo, dele fazendo comungar todos os que o escutam ( cf. pp. 192-3).
Deixo-vos este excerto admirável do romance, de modo a cantarmos de novo um Abril que havemos de erguer mais pleno do que o que temos na memória:

“Macário como se quisesse aliviar o coração, levantou uma perna e iniciou as cantigas. Temos a tarde toda, oh gente. Isto hoje pode não ter fim. Os vizinhos sentiram que a sombra concreta podia começar a chegar à rua, apesar da lentidão, e por isso se sentaram em fila no poial de pedra. Macário de perna levantada entre os portais, apoiando o pé sobre o tampo duma cadeira. Palhetava fino e vibrado, requebrando a melodia como de soluços. Essa e ainda essa, e ainda outra parecida à primeira. Tiago pensava, vendo a palheta vibrar as cordas que o instrumento podia quebrar-se. Seguindo ele todos os movimentos da mão. E experimentou uma inveja saudosa de um outro mundo, onde ele próprio teria sido capaz de desferir a música sobre uma caixa de som. E estes pensamentos eram tristes. Vinham no fio e na ponta daquele requebro, vibrante e repicado, sem um som de canto. O bandolim do seu vizinho fazia-lhe representar mulheres que nunca se queixavam, nem perdiam os dentes, e que no entanto amavam muito e bem. Mulheres que morriam de pé e não se deixavam ver enterrar. Só para não deixarem nos amantes a lembrança da desfiguração. Por isso teve de dizer com licença. Macário parou, e Tiago disse. Um momento, homem, um momento. Muda de estilo, que essa faz-me humedecer a vista. Ou será do calor que faz? Então Macário concentrou-se sobre um último riso, fechou os olhos, iluminou os dentes e toda a cavidade da boca e começou também a cantar. Com o balanço de todo o corpo. Que por causa de uma cobrinha. Esmagada no terreiral. Toda a gente sua vizinha. Ai toda a gente. Toda a gente sua vizinha. Se afogava em cagaçal. Nesse momento chegavam as crianças atraídas pela música e pelo canto, em passo solene e chapéu fora, e o cantor repetiu a quadra de perna no ar. No final da copla, fechou completamente os olhos e juntou os dois pés. Levantou o bandolim no ar e disse. Tudo. Tudo o que canto e toco me sai directamente desta. Apontando a cabeça com o dedo.
- Compões bem, meu filho. Mas és perdido nesta terra. Disse Manuel Gertrudes.”

Lídia Jorge, O dia dos prodígios, D. Quixote, Lisboa, 2010


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