terça-feira, 20 de novembro de 2012

Para uma justificação da Desobediência Civil: Parte II


Ponto 3. John Rawls, na sua obra neocontratualista Uma Teoria da Justiça, analisa o tema da desobediência civil no capítulo VI. A teoria desta é concebida apenas para o caso de uma sociedade quase justa, que seja bem ordenada, mas na qual ocorram sérias violações da justiça. É considerada um acto político, não-violento, decidido com o objetivo de provocar uma mudança nas leis ou na política. Trata-se de uma apelação pública de que os princípios da cooperação entre homens livres e iguais não estão a ser respeitadas, distinguindo-se de outras formas de protesto como a ação militante e a objeção de consciência.
Este ato fundamenta-se na conceção de justiça partilhada que subjaz à ordem política, mas só é legítimo quando ocorre a violação persistente e deliberada dos dois princípios básicos da conceção de justiça, durante um período de tempo extenso, em especial a lesão das liberdades fundamentais, as quais, pelo primeiro princípio, são direitos reconhecidos a cada pessoa de modo igual. Através da desobediência, uma minoria força a maioria à opção de persistir em manter a sua posição ou de, tendo em vista o senso comum da justiça, reconhecer as exigências legítimas daquela.
A desobediência civil deve ser precedida de apelos normais à maioria política. Deve haver prévias tentativas para fazer com que a lei seja revogada. Apenas após a desconsideração dos protestos e demonstrações legalmente permitidos é que se deve invocar a desobediência civil. Esta decisão deve ser tomada com toda a prudência, após feita uma correta avaliação da razoabilidade do exercício  de tal “direito”. E é também importante que ela seja compreendida, já que se trata de um apelo público por parte daqueles que são vítimas de sérias injustiças e que não estão obrigados à submissão.
Ao lado de eleições livres e regulares e um poder judiciário independente, competente para interpretar a constituição, a desobediência civil, quando utilizada de forma moderada e ponderada, ajuda a manter e a fortalecer as instituições justas.
O facto de os cidadãos responderem à violação das liberdades fundamentais por meio da desobediência civil, significa o reforço e não enfraquecimento destas liberdades. A desobediência civil é uma forma de introdução, dentro dos limites da fidelidade ao direito, de um mecanismo de último recurso que mantenha a estabilidade de uma constituição justa. E embora ilegal, não viola o direito, pois enquanto exercício de um direito de liberdade política é norteada no seu princípio pelo interesse do interesse comum.
Se a desobediência civil injustificada ameaçar a paz civil, a responsabilidade não será daqueles que protestam, mas daqueles cujo abuso do poder e da autoridade justifica essa oposição.
A utilização do aparelho coercitivo do Estado para conservar instituições ou leis manifestamente injustas é em si mesma uma forma ilegítima do emprego da força, à qual se terá, a partir de certo momento, o direito de resistir.
Conclusão. O carácter compromissório da Nossa Constituição, onde estão patentes as influências de diversas correntes ideológicas (como afirma Jorge Miranda), não permitirá descortinar nela também a sua inspiração liberal, à maneira de Locke e Montesquieu mais do que à maneira de Rousseau?
Se assim for, não seria pertinente retomar, em próxima revisão constitucional,  esse espírito, nomeadamente a partir da letra da sua redação inicial, que estabelecia, no seu artigo 20, ponto 2.,  “o direito de resistência do cidadão a qualquer ordem que ofenda os seus direitos”? Direito esse que sucessivas revisões extirparam, ficando a defesa do cidadão, na versão actual da Constituição, confinada ao “direito de petição e de ação popular”, nos quadros previstos pela lei.
Poderíamos argumentar que a nossa história e a nossa cultura nunca se moveram para a defesa e a consagração constitucional deste direito.
Mas a aguda consciência dos direitos, hoje mais patente do que no passado, poderá ser uma razão pela pensar a contra-pelo da história e da cultura, para reforçar a capacidade de intervenção política dos cidadãos.
A consagração constitucional do direito de desobediência civil, para além de explicitar um direito fundamental inerente ao “espírito das leis” de um regime liberal, tornaria a nossa lei fundamental mais em consonância com a natureza imanente da unidade social e com a exigência de uma sociedade mais justa.

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