terça-feira, 12 de junho de 2012

O significante flutuante na teologia da criação


Proposição 1 . A descoberta renovada de significações cognitivas ou práticas (éticas, jurídicas, políticas) é uma tarefa imposta ao homem pelo significante flutuante (que os israelitas chamaram Deus) desde a criação do mundo.

O significante flutuante na sua gratuitidade tudo dispôs para que o homem pusesse em marcha o processo histórico de descobrir e criar significados, paulatinamente. Não indicou término, nesse momento do nascimento do homem.
Dotação de recursos pródiga a proteger e a desenvolver: vida, sabedoria, linguagem, relação, felicidade. E porque a oferta representava um desafio enorme, por isso se acompanhava de uma injunção, de alcance pedagógico, que indicava o que aproxima ou afasta do desígnio comunicado.  
Traduzindo a abstração, fiquemos com um resumo da história tal como a Bíblia no-la apresenta, no Génesis.
Este livro inicia-se com duas narrativas da criação do mundo  por Deus, a primeira redigida no séc. VI A.C (autor P), a segunda mais antiga (autor J).
 Complementares na construção de uma unidade, são diferentes em determinados aspetos: a primeira narrativa, mais teológica, reflexiva e totalizante, apresenta a sublimidade do homem no quadro da criação; a segundo, mais existencial, mais imagético, centra-se na condição livre do homem no mundo, que o põe à prova da experiência do mal. Esbocemos uma síntese do que aí se diz.
É pela sua Palavra que vão surgindo, a partir de um fundo indeterminado e informe (tohu-bohu), as junção várias ordens de seres até ao homem, cúspide da Criação. 
A benevolência de Deus é permanentemente reiterada m relação a todo o criado, pois Deus deseja que tudo aumente a sua potência de ser e seja feliz, reconhecendo reiteradamente que toda a obra saída das suas mãos é boa em si mesma.
O homem surge na sua diferença genérica, homem (ish) e mulher (isha), que comunga duma mesma identidade específica, duma mesma semelhança ontológica, cuja natureza os assemelha aos Elohim (seres da corte celeste, sábios e bons, segundo a crença israelita).
Uma vez colocado no mundo, é a sua morada de cujos bens se pode apropriar para satisfazer as suas necessidades, mas é seu dever aumentar os seus recursos, protegendo-o do que o pode danificar e desvelando o sentido do mundo, dando o nome aos animais.
 Ora, o ato de nomear implica designar o homem como ser que se torna palavra, que se faz discurso e frase. Ser de linguagem, o homem comunica com o semelhante, concorda ou discorda, argumenta, celebra contratos, pouco a pouco vai-se elevando-se a patamares de mais rica significação. O pensamento é inerente a esta dimensão da linguagem, participando ambos como faces da mesma moeda na construção da significação e do conhecimento. Por isso, só no quadro da socialidade a significação adequada e o conhecimento verdadeiro têm garantia.
A injunção divina que proíbe o consumo do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal tematiza, de modo alegórico, a questão do conhecimento prático, da condução da vida, centrando-se nos assuntos da vida da relação que, por não serem consensuais, podem gerar conflitos que atingem o interesse ou a vida dos próprios.
No direito israelita era exigido o depoimento de testemunhas, necessárias para o veredicto juiz, no julgamento de um homicídio. Eram também requeridas na celebração de contratos, bastando a atestação dos contraentes nos mais simples.
Assim, o conhecimento da verdade aparece ligado a atestação intelectiva, à elaboração de uma resposta para uma questão. A própria proximidade entre a palavra testemunho (êdout) e a palavra conhecimento( DaÂt),que derivam da mesma palavra, (âd),o advérbio “até a”( que imprime a ideia de movimento para), dá força ao argumento.

É assim este aspeto jurídico que é o fundamento do tabu bíblico de comer o fruto da árvore do Bem e do Mal (Gn2, 17), devendo interpretar-se a expressão “ fruto”como a boa decisão e “árvore”, com toda a sua ramificação, como a diversidade dos pontos de vista sobre a matéria a esclarecer”. “Comer” (okla) significa que o conhecimento em vez de prosseguir no seu devir até ao apuramento da verdade, se fixa, se paralisa num momento, fascinado pelo que está alcançado.
E esse encantamento, quando a mulher viu que o fruto era bom para o apetite e formoso para a vista, comendo-o e dando-o a comer ao marido (Gn3, 6) paralisou o conhecimento na sensorialidade do objeto, deixando-se arrastar para a sua órbita. Aí, dá-se um regresso ao estado pré-humano.

Quando se pensa que o conhecimento é uma conquista de indivíduo solitário, seu autor e beneficiário, entra-se em contradição com a natureza do próprio desígnio para o qual Deus fez o homem: procurar em parceria com os outros o discernimento do que é justo e bom. E a consequência para o indivíduo, que perde as amarras que o ligam aos outros (e a Deus), só pode ser a sua queda para fora da socialidade: regressão ao pré-humano, à inumanidade, que é o nada do homem, a morte.

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