quarta-feira, 13 de junho de 2012

Didascália partida: um postal para Hegel


A velha canção, que trauteei no post anterior, afinal – apercebi-me post factum – não é mais do que uma breve paráfrase do que Hegel escreveu, que é uma paráfrase de outra e … caímos na indeterminação da proveniência: “depois da criação da natureza o homem aparece e opõe-se ao mundo natural; ele é o ser que se eleva num universo segundo.” Filósofo cristão feliz, Hegel soube amar a vida e, pelo conceito, levar de vencida a morte.

É ainda possível que essa velha canção nos anime, nos abrace e se torne o sangue das nossas veias, quando a cultura nos tornou mais lúcidos, mais desconfiados das grandes promessas, e a história que está atrás de nós já não é um espelho onde seja possível olharmo-nos e reconhecermo-nos, tal a barbárie que a habita? Terá sido um sonho feliz que se tornou entretanto um pesadelo, que não se esquece porque se imprimiu na carne, mas que gostaríamos de curar por uma qualquer medicina da alma? Com efeito, se somos tão grandiosos como afirmam as narrativas da fundação do mundo, embora sujeitos ao pecado, como é possível que tenhamos descido em queda sem fim? Dirá o crente que foi por não se ter seguido sempre em linha reta, como determinam as injunções divinas.

Pois bem, como seria possível isso se tudo na nossa experiência pessoal e relacional é complexo, emaranhado, feito de recuos e de avanços, sempre as nossas ações comportam efeitos imprevisíveis, perversos tantas vezes? Claro que Hegel, que era um apologeta esperto, desculpou a coisa pelas manhas da razão, pondo assim ordem no som e na fúria da vida.
Pode ser que Hegel, ainda que com boas intenções e como muito arrojo especulativo, tocado por algum excesso de cerveja bávara que muito apreciava ou por sob o efeito anestésico do desvairo provocado por alguma Valquíria tenha sido acometido por algum delírio persistente, que travestiu sob a forma da Odisseia da Ideia Absoluta, alegorese de Napoleão a cavalo. Mas parece que sempre gozou de boa saúde, talvez gostasse de ser admirado, e podia sê-lo com todo o mérito.

Podemos ainda pensar que Beckett ou Gottfried Benn são mais sensatos do que Hegel, porque são mais sensíveis ao sofrimento dos homens, e nesse ponto perde Hegel.
A velha canção que trauteei talvez seja ainda boa, ou útil, ajuda-nos a trabalhar sem descanso na melhoria das nossas vidas e nas dos outros. É um alento, para o crente uma fé e uma esperança. Mas para todos resta – e nisso estamos todos no mesmo barco e na iminência do mesmo naufrágio – o mistério da noite sem fim da nossa ignorância e incerteza em relação ao ser.

Apetece perguntar, é a velha questão de Leibniz nunca respondida (exceto que reconheçamos autoridade ao que se diz na Bíblia): “porquê o ser e não antes o nada?” Há que concluir com Heidegger: “Nur noch ein Gott Kann uns retten”.

Com saudades do bonacheirão Hegel, seu incondicional admirador, Vasco

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