sábado, 9 de março de 2013

O desejo de Elvira, por Apollinaire (1880-1918)

Picasso, Mulher sentada junto a uma Janela
O romance de Apollinaire "a mulher sentada", publicado em 1920, aborda o tema do desejo feminino, sendo Elvira a personagem central, “mulher de espírito livre e memória notável” que vai colecionando amante sobre amante, sempre esforçando-se por se manter estéril em clara dissidência com a moral social dominante, que impunha à mulher como sua função principal a procriação.
O título do livro reenvia para o tópico “eu vi uma mulher sentada sobre uma besta escarlate” do Apocalipse (17, 1-5), tomando aqui o sentido do triunfo da emancipação da mulher relativamente a todas as formas de dominação falocrática da cultura ocidental.
A história é contada por um narrador omnisciente, na terceira pessoa, entrecortada com passagens das personagens em discurso direto. Como pano de fundo, a referência à guerra (a ação do romance decorre nos primeiros anos da 1ª Guerra Mundial), sobre a incerteza dos tempos que correm e a exaltação da beleza da poesia e das artes … pois a ação decorre no espaço onde a modernidade artística está em plena efervescência, Paris.
Num determinado momento da diegese, já terminal, o texto refere que Elvira, estando a viver com Nicolau Varinoff, era cortejada por Pablo Canouris, “o pintor das mãos azul celeste”, que conhecera há algum tempo e que não deixava de lhe propor que fosse viver com ele. E quando, após consultar uma vidente sobre o seu destino, na companhia de uma amiga, esta a informa de que ela iria deixar o atual amante para ir viver com o pintor, fica muito impressionada com o vaticínio.
Vejamos este momento emblemático da manifestação do desejo feminino enquanto afirmação da independência da mulher, no plano social, sexual e laboral:

“Voltou muito impressionada daquela visita. No dia seguinte, ao acordar, ouviu um cão uivar na rua. “Estás a ouvir aquele cão a uivar?” – disse ele para Nicolau Varinoff- - Significa separação.”
Ele não fez caso, mas, de tarde, enquanto Nicolau foi de visita à irmã, Elvira correu a casa de Pablo e disse-lhe que decidira ficar com ele. (…)
Mas logo ao segundo dia se cansou de Pablo. Escreveu a Nicolau, que lhe respondeu que viesse e, ao oitavo dia, valendo-se de uma ausência de Pablo, abandonou o “atelier” do pintor das mãos azul celeste, o qual, ao recebê-la em sua casa, não tivera suficiente presença de espírito para lhe dizer que ela era ela e para lhe confiar as chaves.
Porque as mulheres têm hoje em dia, consciência da sua importância ímpar como guardiãs da vida social e da raça, cujos representantes machos fazem os possíveis por se aniquilarem. Dentro ou fora do casamento, só muito impacientemente suportam o jugo viril, querem ser senhoras do destino do homem e preocupando-se muito pouco com submissões, tomaram, doravante, gosto pela liberdade, pois, para salvar a raça humana, necessário ter as mãos livres.
E foi por isso que, de regresso a casa de Nicolau Varinoff, que não achara conveniente conservar o seu domínio sobre ela e que, partindo para a guerra, lhe proporcionara o ensejo de saborear a sua liberdade, foi por tudo isso que ela se pôs a meditar no exemplo de sua avó Pamela, a Mórmone, e concluiu, consoante essa experiência, que a poliginia não era o que se impunha em tempo de guerra, nem mesmo sequer em tempo de paz.
Decidiu ela que as mulheres, graças ao seu número e também à liberdade que usufruíam em relação ao Estado, detinham doravante um poder que chegava a ultrapassar aquele que, outrora, parecia ser pertença do homem, tornado o escravo da nação.
Pensou que esse poder da mulher passaria a exercer-se como devia se esta se entregasse agora abertamente à poliandra; assim arranjou cinco amantes.
Elegeu um palhaço piemontês cujo fato multicolor e cuja maquilhagem a encantavam; um estudante que se destinava às letras, um mutilado de ambos os braços que se lhe dirigia à bruta e que a adorava, um aviador de reserva chamado Pentelemon (a quem escolhera por esse nome lhe recordar o da Pentelemonskaia onde, em Petrogrado, morara) e, finalmente, um torneiro de obuses, moço do Norte que sabia bonitas cantigas.
Atirou-se ao ardor do trabalho, pois prezava sobremaneira não estar a cargo de nenhum homem, e, como tinha sucesso, ganhava bem a vida.
Valia-se regiamente do poder que a guerra lhe auferira.
Mas nenhum dos seus amantes lhe ocupava o coração, que ela compartilhava com Mavise Bandarelle e Corail, a linda ruiva de olhos cor de avelã, que de aparência tanto lembrava uma gota de sangue sobre uma espada."
Guillaume Apollinaire, A Mulher sentada, trad. de Luiza Neto Jorge (ed. fr.: La femme assise), editorial Estampa, 1974, pp. 103-4.

PS: homenagem a todas as mulheres na celebração do Dia Internacional da Mulher (ontem, dia 8 de Março)


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