terça-feira, 12 de março de 2013

“Uma ordenança demasiado escrupulosa”, o soldado Chveik no meio de nós

O excerto do romance O valente Soldado Chveik do escritor checo Jaroslav Hasek (1883-1923), publicado em 1923, descreve as peripécias da vida de um soldado durante a 1ª Guerra Mundial.
A sua construção é comandada por uma estratégia retórica que permite apreender o sentido como o inverso do que se diz: a ironia. Esta põe assim em causa a atitude essencial do soldado Chveik: a submissão voluntária à autoridade instituída.
Convoca-nos assim a uma atitude de distanciação crítica a toda a forma de obediência cega ao patrão, político, religioso ou outro. A única forma que nos permite vencer as aporias que nos cercam, derrogando o que dizem os “tenentes”, que, por vergarem a espinha aos “generais”, julgam estar legitimados para exigir obediência aos “soldados”.
Eis o excerto:
“Chveik aprontava-se para ir desencantar um cão de guarda de estrebaria, quando a campainha tiniu com frenesim no apartamento silencioso; abriu a porta e encontrou-se face a face com uma senhora que desejava falar urgentemente ao tenente Lucas. Aos seus pés achavam-se duas malas enormes deixadas ali por um moço de fretes. Chveik enxergou ainda o barrete vermelho a desaparecer pela escada abaixo.
- Não está em casa - falou secamente Chveik.
Mas a jovem, sem se deixar desencorajar por este acolhimento pouco amável, introduziu-se na saleta e ordenou categoricamente a Chveik.
- Leve as malas para o quarto de dormir!
- É impossível, sem ordem formal do meu tenente; disse-me de uma vez para sempre que nunca devia proceder de outra maneira.
- O  senhor  está  doido! - bradou  a jovem.--Eu  venho de visita.
- Mas eu ignoro-o completamente - replicou Chveik. O meu tenente está hoje de serviço e só regressa de madrugada. A única ordem que me deu foi de procurar um cão de guarda de estrebaria. Mais nada. Não me falou nem de malas nem de senhoras. Vou agora fechar o nosso apartamento à chave e a senhora será bastante gentil em ir-se embora. O tenente não me participou a sua visita e não posso confiar a casa a pessoas desconhecidas que eu nunca vi. Uma vez, o confeiteiro Belcicky, da nossa rua, deixou um homem sozinho numa arrecadação; o sujeito arrombou um armário e raspou-se pela janela.
Como a visitante se pusesse a chorar, Chveik mudou de tom.
- Eu não penso mal de si, minha rica senhora, mas não pode ficar aqui. Acabará por me dar razão quando souber que o tenente me confiou o apartamento a mim, que sou o responsável de tudo. Peço-lhe, portanto, mais uma vez, e muito delicadamente, de fazer o favor de se retirar. Enquanto não receber ordem formal do tenente eu não a conheço. Causa-me pena ter de lhe falar assim, mas com os militares, antes de mais nada, é preciso disciplina.
Um pouco mais serena, a jovem sacou de um cartão de visita, escreveu nele algumas linhas e, metendo-o num galante envelope, disse com embaraço:
- Leve isto ao tenente, esperarei aqui pela resposta. Tome cinco coroas como gratificação.
- Não há nada a fazer - respondeu Chveik, magoado pela obstinação  da  inesperada visitante. - Guarde  as  suas cinco coroas, aqui as tem, deixo-lhas em cima da cadeira. Se quiser, venha  comigo  ao quartel  e  espere-me  lá,  enquanto  eu entrego a  carta ao  tenente.  Nessa  altura,  terá a resposta, mas não teime em querer ficar aqui; teria de esperar quinze anos. Não vale a pena.
Dito isto, empurrou as duas mala do corredor para a saleta e, fazendo ranger a fechadura, gritou, imitando o guarda de um velho castelo ou de um museu:
- Vai fechar!
Desesperada, a jovem saiu do apartamento; Chveik fechou a porta com duas voltas de chave e desceu a escada. A desconhecida seguia-o como um cachorrinho e só o conseguiu alcançar na altura em que Chveik saía do estanco.
Ela caminhava agora ao lado dele e esforçava-se por encetar conversa.
- Não se esquece de entregar o meu cartão, sem falta ?
- Pois se já lhe disse que sim.
- E está certo de encontrar o tenente ?
- Isso não sei.
A estas palavras seguiu-se um longo silêncio. Foi ainda a infortunada visitante que experimentou fazer falar a ordenança demasiado escrupulosa:
- Quer  dizer,  então,  que  o  senhor julga  não  encontrar o tenente.
- Não disse isso.
- E onde pensa encontrá-lo?
- A esse respeito, nada lhe posso dizer.
De novo reinou o silêncio. Enfim, a jovem arriscou ainda uma pergunta:
- O senhor não perdeu a minha carta ?
- Ainda não.
- Vai entregá-la ao tenente?
- Sim.
- E está convencido de o encontrar?
- Que diabo! Já lhe disse que não sei. É espantoso como existem pessoas curiosas que perguntam a mesma coisa cinquenta vezes. É como se eu me divertisse a fazer parar na rua os transeuntes, um após outro, para lhes perguntar que dia do mês é hoje.
 Esgotados desta maneira todos os expedientes de conversação, caminharam até ao quartel sem se importarem mais um com o outro. Em frente da porta, Chveik convidou a jovem a esperá-lo e entabulou uma discussão sobre a guerra com uma das sentinelas.”
Jaroslav Hasek, O valente Soldado Chveik, Ed. Público e Levoir, trad. de Alexandre Cabral, 2011, pp. 194-6


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