quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Aviso aos atuais discípulos de Shylock: um trecho de Shakespeare


Shylock é o personagem da comédia de Shakespeare O Mercador de Veneza (1596), judeu usurário avarento que empresta dinheiro a António, mercador de Veneza, exigindo a fiança de uma libra da sua carne, que vai ser exigida quanto este entra em insolvência. A causa transita para tribunal, sendo a sentença desfavorável a Shylock: no contrato que celebrou com António conspirou contra a vida de um cidadão, ficando segundo a lei obrigado a entregar todos os seus bens, a meias, ao ofendido e ao Estado.
Para cumular a sua desgraça, Shylock vê a sua filha Jessica, perdida de amores por Lourenço, amigo de António, sair da casa paterna, tornar-se cristã e levar consigo as jóias da sua herança. Como tinham para Shylock um valor afetivo inestimável, além de todo o preço, pois simbolizavam o amor do pai por uma filha, que ora se abolia nesse ato, turbou ainda mais a fúria de Shylock, somando desgraça sobre desgraça.
Esta história, que o Teatro de Almada levou à cena pelas mãos do saudoso João Benite, continua a ser uma boa proposta para pensarmos a ordem, ou desordem, em que estamos mergulhados. Pois os discípulos de Shylock hoje procedem com igual arrogância, emprestando sob hipoteca da carne dos seus credores. A resposta hoje não pode apenas ser a denúncia moral: tem que passar pelas armas da ação coletiva, organizada e esclarecida.
Trecho de O mercador de Veneza:
Acto 3, Cena 3
 Veneza. Uma rua.
[Entram Shylock, Salarino, António e o carcereiro]

SHYLOCK
Carcereiro, olha para ele: não me fales de misericórdia.
Este é o louco que emprestava dinheiro grátis:
Carcereiro, olha para ele.
ANTÓNIO
Ouve-me mais uma vez, bom Shylock.
SHYLOCK
Eu tenho a minha fiança. Não fales contra a fiança.
Jurei uma jura de que terei a minha fiança. [5]
Chamaste-me cão sem teres motivos
Mas, já que sou um cão, cuidado com as minhas presas.
O Duque terá que me conceder justiça. Pergunto-me
Se tu, mau carcereiro, serás tão amável
Que o faças sair da prisão a seu pedido. [10]
ANTÓNIO
Peço-te, ouve-me falar.
SHYLOCK
Eu terei a minha fiança. Não te quero ouvir falar.
Eu terei a minha fiança, e por isso não fales mais.
Não farás de mim um bobo compassivo de olhos mortos.
A abanar a cabeça, a desistir, a suspirar, e ceder [15]
A intercessores cristãos. Não insistas.
Não quero conversas, terei a minha fiança.
[Sai]
SALARINO
É o mais insensível animal
Que alguma vez andou entre os homens.
ANTÓNIO
Deixa-o em paz:
Não o seguirei mais com pedidos inúteis. [20]
Ele quer a minha vida. Os motivos conheço-lhos bem:
Muitas vezes livrei das suas livranças
Muitos do que às vezes a mim se lamentavam,
É por isso que me odeia.
SALARINO
Tenho a certeza de que o Duque
Nunca permitirá que esta fiança seja paga. [25]
ANTÓNIO
O duque não pode impedir o curso da lei:
Por causa dos privilégios que os estrangeiros têm
Connosco em Veneza. Porque se a negar
Em muito prejudicará a justiça neste Estado,
Visto que o negócio e lucro da cidade [30]
Compreende o de todas as nações. Por isso, vai:
Estas lamentações e perdas cansaram-me tanto,
Que muito dificilmente poderei dispensar meio quilo de carne
Amanhã, ao meu sanguinário credor.
Carcereiro, vamos. Queira Deus
Que Bassânio volte [35]
Para me ver pagar-lhe a dívida, e assim não me importarei.
[Saem]

William Shakespeare, O mercador de Veneza,  
trad. Helena Barbas, Março de 2002 (edição online), pp. 52-3




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