quarta-feira, 25 de setembro de 2013

“Sim, quero dizer sim ao inacabado”: um poema de António Ramos Rosa na sua morte


Miró, Constelação: A Estrela da Manhã, 1940
Fui um leitor compulsivo de um dos seus livros, O Ciclo do Cavalo, pelo que tenho uma visão muito limitada da grandeza do poeta. Sentia-me arrebatado pela força sugestiva das suas palavras, que ressoavam como uma música de celebração da vida, afirmada como plenitude, liberdade e alegria sem manchas nem limites. Nessa altura, o poeta já tinha uma vasta obra publicada e comentada, nomeadamente por Eduardo Prado Coelho e por Eduardo Lourenço.
Um acaso da vida proporcionou-me (e ao meu irmão) estabelecer um contacto com Ramos Rosa, vinha ele de um café situado perto do local onde morava então, na zona do Campo Pequeno. Na conversa que se fez peripateticamente, vendo o nosso interesse pela sua poesia, convidou-nos a ir a sua casa (morava num 7º andar), para nos oferecer um dos seus livros já publicados. E já na sua casa, onde nos recebeu com toda a hospitalidade, falou-nos de algumas das suas leituras, que marcaram a sua análise ensaística e talvez a sua poesia. Lembro-me de me ter referido Heidegger, não me lembro se também Nietzsche, mas é possível.
O livro de poesia que me ofereceu foi No Calcanhar do Vento, e teve a generosidade de lhe apor a seguinte dedicatória:
“ao Vasco
e ao José Mário
na fraternidade
e na alegria
do instante deste
encontro lisboeta
António Ramos Rosa
Lisboa 11.03-88”
Para retribuir a sua imensa gratidão, celebro-o nesta hora em que já não está entre nós oferendo ao leitor o poema que encerra esta obra e que abre à evidência de uma plenitude imanente:

“Sim, quero dizer sim ao inacabado
que é o princípio de tudo
e o que não é ainda,
sim ao vazio coração que ignora
e que no silêncio preserva o sim do início,
sim a algumas palavras que são nuvens
brancas e deslizam amplas
sobre um mundo pacífico,
sim aos instrumentos simples
da cozinha,
sim à liberdade do fogo
que adensa o vigor da consciência,
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da presença,
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma profunda arquitectura íntima,
sim à pupila já madura
que se inebria das sombras das figuras,
sim à solidão quando ela é branca
e desenha a matéria cristalina,
sim às folhas que oscilam e brilham
ao subtil sopro de uma brisa,
sim ao espaço da casa, à sua música
entre o sono e a lucidez, que apazigua,
sim aos exercícios pacientes
em que a claridade pousa no vagar que a pensa,
sim à ternura no centro da clareira
tremendo como uma lâmpada sem sombra,
sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência,
sim a ti, quase monótona, quase nula
mas que és como o vento insubornável,
sim a ti, que és nada e atravessas tudo
e és o sangue secreto do poema.”

António Ramos Rosa, No Calcanhar do Vento, Centelha, 1987, pp. 79-80.

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