sexta-feira, 20 de setembro de 2013

“O Lenço”: interpreta o fadista Alfredo Marceneiro


Alfredo Marceneiro, o último representante do fado castiço, é uma referência incontornável na formação de qualquer fadista, que o consideram um modelo de intérprete pelo modo singular como soube usar o timbre da sua voz, imprimindo ao canto, em cadências sucessivas, uma pontuação repassada de sensibilidade e de verdade.
Para todos os que apreciam esta nobre arte, que hoje são praticamente todos os portugueses, conhecem como foi difícil o seu passado, onde barreiras ideológicas impediram o seu reconhecimento como verdadeira arte do género musical. Como nasceu plebeu, oriundo dos lugares viciosos das tabernas de Lisboa, representantes da cultura erudita desde uma longa data, não reconheceram ao fado valor artístico, tanto escritores (Ramalho Ortigão, José Régio, António Osório) como até músicos.
Como exemplo de uma atitude muito depreciativa, Fernando  Lopes Graça diz sobre o fado o seguinte:
“a canção urbana é pobre e incaracterística, banal e incolor, sem força sugestiva nem originalidade de contornos. Ou é o execrando fado, produto de corrupção de sensibilidade artística e moral, quando não indústria organizada e altamente lucrativa, como se verifica hoje em dia, …” (cf. Fernando Lopes Graça, A canção Popular Portuguesa, Pub. Europa-América, pp. 23-4).
A situação atual é bem diferente, pois o fado é apreciado por todos e a compreensão do seu valor artístico e do seu significado cultural tem vindo a ser ativada por sociólogos, antropólogos e musicólogos (por exemplo Rui Vieira Nery).

A letra do fado que vos apresento (da autoria do compositor Henrique Rêgo, mais como fruição da voz do intérprete, permite também sentir como esta canção é habitada pela tensão trágica constituinte da condição humana (em que opostos se confrontam (o bem e o mal; o destino e a liberdade; o amor e o ódio; a vida e a morte, etc.) até ao desfecho do elemento negativo, mas nela se reproduzem também as representações ideológicas da diferenciação social (entre ricos e pobres; ou homens e mulheres, etc.). É sobretudo neste domínio antropológico e sociológico que se nota uma escassez de produção científica, havendo matéria inexplorada a convidar investigadores para se lançarem na tarefa.

O lenço que me ofertaste
Tinha um coração no meio
Quando ao nosso amor faltaste
Eu fui-me ao lenço e rasguei-o

Inda me lembro esse lenço
Vindo do teu seio túmido
Escondi-o ainda húmido
No peito com fogo intenso
E se acaso hoje penso
Do qual, infantil receio
Muito orgulhoso guardei-o
Lamento a minha loucura
Porque esse lenço, perjura
Tinha um coração no meio

Esse coração bordado
Por triste sina era o meu
E por isso ele morreu
Quando o lenço foi rasgado
Foi-se a chama do passado
Pois em cinzas sepultaste
Este amor que atraiçoaste
O que serve a dor incalma
Vesti de luto minh'alma
Quando ao nosso amor faltaste

Beijos, sorrisos, afagos
Que me deste, hei-de esquecê-los
Pois os seus doces desvelos
Com meus beijos foram pagos
Teus olhos eram dois lagos
Lascivo era o teu seio
Foi tudo efémero enleio
Breve fugaz ilusão
Magoaste-me o coração
Eu fui-me ao lenço e rasguei-o

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