terça-feira, 1 de janeiro de 2013

“Medidas contra a violência”, um conto filosófico de Brecht


Bertolt  Brecht é o criador de um misterioso personagem que figura em vários contos escritos ao longo de trinta anos: o senhor Keuner. São textos curtos (são raros os que ultrapassam uma página) que nos apresentam esse sábio pouco convencional, que usa a ironia filosófica como estratégia de corrosão das ideias dominantes (Propriedade, Indivíduo, Nação, Deus, Bondade, Honestidade, violência). Fazendo-as colidir com a realidade, desperta o sono dogmático do espectador, obrigando-o a abrir-se a um questionamento que o prepara para uma atitude prática.
Repare-se, no conto que se transcreve, como a prática desmente a teoria. A contradição despertará no espetador da peça uma atitude crítica, que o disporá a uma tomada de posição consequente.  Eis o conto:


 Quando o senhor Keuner, o Pensador, se pronunciou contra a violência numa grande sala cheia de gente, reparou que as pessoas começaram logo a recuar e a sair. Voltou-se e viu de pé, atrás de si (…) a Violência.

“O que dizias tu?”, perguntou-lhe a Violência.

“Pronunciava-me a favor da violência” , respondeu o senhor Keuner.

Quando o senhor Keuner saiu, os seus alunos quiseram saber o que era feito da sua coragem. O senhor Keuner respondeu:

“A coragem que tenho não chega para me deixar açoitar. Isto porque preciso de mais longa vida do que a violência.”

E contou a seguinte história:

“Um dia, nos tempos da ilegalidade, em casa do senhor Egge, que tinha aprendido a dizer “não”, apareceu um agente com um documento assinado pelos que reinavam na cidade, dizendo que todo o domicílio onde o portador pusesse o pé passaria a ser propriedade sua; de igual forma, também passaria a pertencer-lhe a comida que reclamasse, e todo o homem que se cruzasse com ele passaria a estar ao seu serviço.
O agente instalou-se numa cadeira, pediu comida, lavou-se, deitou-se e, com o rosto voltado para a parede perguntou, pouco antes de adormecer: “Estás disposto a servir-me?

O senhor Egge tapou-o com uma manta, afugentou as moscas, ficou de vigília enquanto ele dormia e continuou a obedecer-lhe durante sete anos. Não obstante tudo o que lhe fez, houve uma coisa de que se absteve sempre: pronunciar uma palavra, fosse ela qual fosse. O agente, que engordara de tanto comer, dormir e mandar, passados sete amos morreu. O senhor Egge embrulhou-o, então, na manta já gasta, arrastou-o para fora de casa, limpou a cama, caiou as paredes, respirou fundo e respondeu:Não!”

Bertolt Brecht, Histórias do Senhor Keuner, Hiena Editora, pp.17-8



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