domingo, 6 de janeiro de 2013

“Sabe capitão, nós, a gentinha, não temos a virtude, só seguimos a natureza”, Woyzeck

Após o malogro do ideário emancipatório da Revolução Francesa e da retomada política das forças conservadoras na Europa, na sequência da Conferência de Berlim (1815), a  Alemanha, que tinha ficado incólume ao sobressalto da história, foi anunciando na filosofia  e na literatura a necessidade de uma transformação política e cultural consequente com o espírito das Luzes.
Dois exemplos significativos no plano filosófico da necessidade de mudanças  estrutrurais na ordem existente encontramo-los em Fichte e em Hegel.
 Fichte procede a uma justificação teórica da revolução na sua obra Considerações sobre a Revolução Francesa, de 1793, contra os seus detractores (nomeadamente Burke).
 Hegel assume o legado revolucionário como um momento necessário mas não suficiente do devir da história , na obra Fenomenologia do Espírito (1807), perspetiva que desemboca na sua conceção da racionalidade do Estado enquanto manifestação concreta da ideia moral, isto é, enquanto Estado de Direito, nos Princípios da Filosofia do Direito (1821).
No plano da literatura, o movimento do século XVIII Stürm und Drang é o primeiro tiro de partida do protesto anti-absolutista, logo seguido pela lírica patriótica dos românticos. Mas é no período que ficou conhecido pelo Vormärz (entre 1830-48) que se exprime uma radicalização da consciência dos problemas do tempo, que tomou expressão estética numa literatura comprometida, que se opunha à evasão romântica e que fazia a denúncia de todos os dogmatismos (político, ético, religioso, social) para a emergência de uma sociedade livre, sem senhores nem amos.
É a este propósito exemplar o caso do escritor e dramaturgo  Karl Georg Büchner  (1813-1837), que integrou  o movimento político-literário da Jovem Alemanha, o “Junges Deutschland” e  que um decreto régio de 1835 pôs fora da lei, não permitindo aos seus membros a publicação das suas obras. 
A sua obra literária inovadora é um meio de expressão da sua atitude revolucionária face à ordem existente, a qual tomou forma objetiva na sua intenção de promover uma insurreição em Hesse sob o lema: “Paz às cabanas! Guerra aos palácios!” Esta proclamação pagou-a Büchner com uma ordem de prisão que o obrigou a refugiar-se na casa do pai.
Nas suas obras, pensa o fracasso da Revolução Francesa (na Morte de Danton  de 1835) e satiriza o ideário romântico, nas novelas Leôncio e Lena e em Lenz. Com a peça Woyzeck, um  pobre fuzileiro miliciano,  faz a denúncia da opressão a que são votados os humildes por parte dos que detém poder (na peça, surge um capitão, um médico e um judeu). O desfecho de tanta humilhação, à descoberta da traição da mulher (Maria) com quem vive, com um filho e em condições miseráveis,  é o assassinato desta.
A peça é hoje o texto da dramaturgia alemã mais montado em todo o mundo, tendo sido adaptado também para a ópera por Alban Berg (1921) e para o cinema por Werner Herzog (1979).

Trancrevo a Cena I do primeiro Acto:
“(O Capitão está sentado sobre uma cadeira; Woyzeck faz-lhe a barba.)
CAPITÃO— Calma, Woyzeck, calma; uma coisa depois da outra! Mas ele deixa-me tonto! E o que vou fazer dos dez minutos que ele ganhou, acabando cedo demais? Woyzeck, pense: você só tem os seus trinta lindos anos de vida, trinta anos! São trezentos e sessenta meses... e dias, e horas, e minutos! E o que vai fazer com todo esse tempo? Convém planificar, Woyzeck!
WOYZECK—Sim, senhor Capitão!
CAPITÃO—Temo pelo mundo, quando penso na eternidade. O trabalho, Woyzeck, o trabalho! Eterno, ele que é eterno, ele que é eterno.  Você é capaz de ver isso? No entanto' logo deixa de ser eterno' num instante, é, num instante, Woyzeck. Tenho pavor quando penso que o mundo faz uma volta num dia! Que perda de tempo! Para onde isso nos leva? Já não posso ver a roda de um moinho, Woyzeck, sem ficar melancólico.
WOYZECK — Sim, senhor Capitão.
CAPITÃO— Você está sempre tão apressado' Woyzeck! Um homem de bem não fica assim, um homem de bem, com a consciência tranquila. Mas diga alguma coisa, Woyzeck! Como está o tempo?
WOYZECK— Mau, senhor Capitão, mau. Muito vento. CAPITÃO—Já estou sentindo; é como se alguma coisa corresse lá fora. Esse vento age sobre mim como um rato.
(Manhoso.) Acho que vem na direção sul-norte.
WOYZECK— Isso mesmo, senhor Capitão.
CAPITÃO—Ha, ha, ha! Sul-norte! Ha, ha, ha! Oh, como ele é bobo, como é lastimàvelmente bobo! ( Comovido. ) Woyzeck é um bom homem . . . Mas (Com dignidade.) Woyzeck não tem moral. Moral é quando a gente tem moralidade, entende? É uma bela palavra. Tem um filho sem a bênção da Igreja, como diria o nosso reverendíssimo capelão. Sem a bênção da Igreja, e não é meu.
WOYZECK - Senhor Capitão, o bom Deus não deixará de cuidar do pobre vermezinho, só porque não disseram "amém" antes de ser feito. O Senhor disse: Vinde a mim as criancinhas !
CAPITÃO—O que é que ele está dizendo? Que resposta mais curiosa esta? A resposta deixa-me todo confuso. E quando digo ele, refiro-me a você, a você…
WOYZECK— Nós, os pobres... Sabe, senhor Capitão, o dinheiro, o dinheiro! Quem não tem dinheiro. Às vezes, um de nós coloca um dos nossos diante da moralidade do mundo. Também temos carne e sangue. Pois não somos mesmo desgraçados, neste mundo e no outro'' Acho que, se chegássemos ao céu, teríamos de ajudar a fazer os trovões.”
CAPITÃO—Woyzeck, você não tem virtudes, você não é virtuoso. Carne e sangue! Quando estou à janela, depois da chuva, e vejo as meias brancas passando, pulando através das vielas.. Diabo, Woyzeck, o que me dá é amor. Eu também tenho carne e sangue.Mas Woyzeck, há a virtude, a virtude! E como eu deveria passar o tempo? Digo sempre a mim mesmo: você é um homem virtuoso (Comovido.), um homem bom, um homem bom.
WOYZECK — Sim, senhor Capitão, a virtude. Eu não tenho. Sabe, nós, a gentinha, nós não temos virtude, nós só seguimos a natureza. No entanto, se eu fosse um senhor, se eu tivesse um chapéu, um relógio e uma bengala, e se soubesse falar bem, então seria virtuoso, senhor Capitão. Mas eu sou um pobre coitado.
CAPITÃO — Está bem, Woyzeck. Você é um homem bom, um homem bom. Mas pensa demais, isso dói. Você esta sempre tão apressado. Essa conversa esgotou-me inteiramente. Agora vá embora e não corra tanto; devagar, desça a rua bem devagar!”

Eis a mesma cena na ópera de Alban Berg: 

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