Ponto 3. John Rawls, na sua
obra neocontratualista Uma Teoria da Justiça, analisa o tema da
desobediência civil no capítulo VI. A teoria desta é concebida apenas para o
caso de uma sociedade quase justa, que seja bem ordenada, mas na qual ocorram
sérias violações da justiça. É considerada um acto político, não-violento,
decidido com o objetivo de provocar uma mudança nas leis ou na política.
Trata-se de uma apelação pública de que os princípios da cooperação entre
homens livres e iguais não estão a ser respeitadas, distinguindo-se de outras
formas de protesto como a ação militante e a objeção de consciência.
Este ato fundamenta-se na
conceção de justiça partilhada que subjaz à ordem política, mas só é legítimo
quando ocorre a violação persistente e deliberada dos dois princípios básicos
da conceção de justiça, durante um período de tempo extenso, em especial a
lesão das liberdades fundamentais, as quais, pelo primeiro princípio, são
direitos reconhecidos a cada pessoa de modo igual. Através da desobediência,
uma minoria força a maioria à opção de persistir em manter a sua posição ou de,
tendo em vista o senso comum da justiça, reconhecer as exigências legítimas
daquela.
A desobediência civil deve
ser precedida de apelos normais à maioria política. Deve haver prévias
tentativas para fazer com que a lei seja revogada. Apenas após a desconsideração
dos protestos e demonstrações legalmente permitidos é que se deve invocar a
desobediência civil. Esta decisão deve ser tomada com toda a prudência, após
feita uma correta avaliação da razoabilidade do exercício de tal
“direito”. E é também importante que ela seja compreendida, já que se trata de
um apelo público por parte daqueles que são vítimas de sérias injustiças e que
não estão obrigados à submissão.
Ao lado de eleições livres e
regulares e um poder judiciário independente, competente para interpretar a
constituição, a desobediência civil, quando utilizada de forma moderada e
ponderada, ajuda a manter e a fortalecer as instituições justas.
O facto de os cidadãos
responderem à violação das liberdades fundamentais por meio da desobediência civil,
significa o reforço e não enfraquecimento destas liberdades. A desobediência
civil é uma forma de introdução, dentro dos limites da fidelidade ao direito,
de um mecanismo de último recurso que mantenha a estabilidade de uma
constituição justa. E embora ilegal, não viola o direito, pois enquanto
exercício de um direito de liberdade política é norteada no seu princípio pelo
interesse do interesse comum.
Se a desobediência civil
injustificada ameaçar a paz civil, a responsabilidade não será daqueles que
protestam, mas daqueles cujo abuso do poder e da autoridade justifica essa
oposição.
A utilização do aparelho
coercitivo do Estado para conservar instituições ou leis manifestamente
injustas é em si mesma uma forma ilegítima do emprego da força, à qual se terá,
a partir de certo momento, o direito de resistir.
Conclusão. O carácter
compromissório da Nossa Constituição, onde estão patentes as influências de
diversas correntes ideológicas (como afirma Jorge Miranda), não permitirá
descortinar nela também a sua inspiração liberal, à maneira de Locke e
Montesquieu mais do que à maneira de Rousseau?
Se assim for, não seria
pertinente retomar, em próxima revisão constitucional, esse
espírito, nomeadamente a partir da letra da sua redação inicial, que estabelecia,
no seu artigo 20, ponto 2., “o direito de resistência do cidadão a
qualquer ordem que ofenda os seus direitos”? Direito esse que sucessivas
revisões extirparam, ficando a defesa do cidadão, na versão actual da
Constituição, confinada ao “direito de petição e de ação popular”, nos quadros
previstos pela lei.
Poderíamos argumentar que a
nossa história e a nossa cultura nunca se moveram para a defesa e a consagração
constitucional deste direito.
Mas a aguda consciência dos
direitos, hoje mais patente do que no passado, poderá ser uma razão pela pensar
a contra-pelo da história e da cultura, para reforçar a capacidade de
intervenção política dos cidadãos.
A consagração constitucional
do direito de desobediência civil, para além de explicitar um direito fundamental
inerente ao “espírito das leis” de um regime liberal, tornaria a nossa lei
fundamental mais em consonância com a natureza imanente da unidade social e com
a exigência de uma sociedade mais justa.