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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Nuno Crato: um ventríloquo espúrio de Hayek (a propósito do cheque-ensino)

O título deste comentário justifica-se com base na aprovação em Conselho de Ministros, a 5 de Setembro último, do “Novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo”, que prevê a realização de contratos simples como os pais, o designado cheque-ensino. O esclarecimento cabal do que está em jogo nesta "investida" - para mim é disso que se trata – torna necessário fazer uma análise crítica das razões políticas que o Ministério da Educação e a direita possam invocar para avançar com este desiderato, bem como do fundamento ideológico que se encontra subjacente à interpretação que o Governo faz do texto constitucional neste assunto.
Quanto a este último ponto, considero que Crato, sob a batuta da ideologia neoliberal deste Governo, procura realizar, sem que disso tenha consciência explícita, o projeto reformador de uma “utopia liberal”, de matriz contra-revolucionária, proposto por Hayek nestes termos: “ … um programa que não seja nem uma simples defesa da ordem estabelecida nem uma espécie de socialismo diluído, mas um verdadeiro radicalismo liberal que não poupe as suscetibilidades dos poderes (incluindo os sindicatos), que não seja demasiado prático e não se confine ao que parece politicamente possível hoje.” (cf. Hayek, Studies in Philosophy, Politics and Economics, 1967)).
Esta programa, que tem vindo a ser realizado pelo atual Governo, é a matriz à luz da qual um conjunto de decisões políticas vem tomando forma, por exemplo, falando das mais recentes: a proposta de entrega à exploração privada  uma de uma parte da Zona Económica Exclusiva do espaço marítimo; a liberalização de amplos setores de âmbito público e a sua exploração por interesses privados como a Portugal Telecom, a TAP, a seguradora da Caixa Geral de Depósitos, os CTT, etc..
É assim necessário proceder a uma análise das razões constitucionais alegadas para implementar o cheque-ensino, o que requer uma competência de exegese constitucional apurada, que não possuo em termos jurídicos, e das razões pragmáticas também aduzidas. Para daí se concluir tanto os limites hermenêuticos do intérprete como a verdadeira finalidade da medida.
A fidelidade ao programa referido é um elemento constituinte determinante da pré-compreensão da interpretação normativo-constitucional do Governo dos artigos da Constituição: artigo 36º, que estabelece que os pais têm “o direito à educação dos filhos", e o 43º, que estabelece “a liberdade de aprender e de ensinar", e "o direito de criação de escolas particulares e cooperativas".
Ao partir da positividade de uma norma e daí inferir a consequência para um caso concreto, segundo uma metodologia jurídica clássica, o Governo esquece que o Direito Constitucional hoje, e a sua concretização nas leis, tem de tomar em linha de conta tanto a evolução político-histórica da democracia bem como as ruturas fundamentais, as quais delimitam os argumentos da interpretação histórica. A escola pública foi uma das instituições dessa evolução, que interessa sobretudo promover para realizar mais eficazmente a sua missão, bem como a constitucionalização dos direitos sociais.
Com efeito, a liberdade dos indivíduos (e nem sequer é adequado falar na “liberdade das famílias”, a não ser como extrapolação) constitui um dos alicerces dos Estados de Direito. Mas é preciso esclarecer este noção: liberdade não é só não estar proibido de fazer algo (a liberdade negativa); é também a liberdade enquanto capacidade de escolha (a liberdade positiva).
Assim, se perguntarmos: pode um indivíduo com poucos recursos e com uma socialização dificilmente compatível com a aquisição de uma cultura erudita ser capaz de exercer a sua liberdade? Estará em condições equivalentes aos que se encontram na situação simétrica? Qual a função do Estado? Todas estas questões confluem para o princípio da igualdade, sendo este o nó górdio que interessa deslindar.
À primeira vista, a atribuição daquele cheque às famílias em mais dificuldades parece ser uma boa solução. Mas é compatível tal decisão com a aplicação em todos os casos da medida? Os que, candidatando-se ao ensino particular e não entram, tanto por limites institucionais como por o Estado estar limitado financeiramente, não se sentirão defraudados nas suas expetativas e não acusarão o poder de violar o princípio da equidade? E não estará o Estado, com o dinheiro de todos, a financiar interesses privados, que têm quase sempre em mira o lucro? E tem o Estado condições de regulação e de monitorização dos critérios de seleção dos alunos que vão frequentar essas escolas?
A resposta às questões parece-me evidente: tal lei não é de aplicação em todos os casos, os que não têm acesso sentem-se injustiçados, o Estado não dispõe de meios financeiros nem de capacidade de regulação no setor, colocando-se escandalosamente ao serviço dos interesses privados. A consequência de tudo isto é esta: a escola pública como instituição do Estado perde a sua centralidade no sistema de ensino nacional e tenderá para ser submetida a um cada vez mais apertado controlo de contenção de gastos, com a consequência da perda da sua eficácia educacional e do seu prestígio público.
A igualdade que está na base da liberdade-capacidade sai neste lance inexoravelmente ferida: o cheque-ensino vem acentuar ainda mais a diferenciação social existente, gritante, e vem reforçar os interesses económicos da dominação financeira com que temos que nos haver no dia a dia.
Mas o Governo usa ainda, para justificar a sua concretização da medida em análise, um argumento suplementar. Trata-se da sua confirmação experimental, a propalada melhoria da qualidade de ensino que o privado introduz no sistema. São necessários estudos de sociologia da educação (não os temos, mas eles existem noutros países, não sendo ainda possível neste momento saber com precisão se a melhoria deve ser atribuída à essência do setor privado ou outras variáveis de difícil mensuração.
É sempre bom, como remate, o exemplo da Finlândia: com o melhor sistema educacional a nível mundial, com 1% de ensino particular.
Assim, o ensino particular deve figurar no seu estatuto de subsidiariedade, como está consagrado na lei. A liberdade de ensino está reconhecida constitucionalmente, como o está a “liberdade das famílias” poderem escolher a escola dos seus filhos. Nada justifica, pela análise que esbocei, agravar o que já está mal no panorama da educação nacional.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Alain Badiou, um pensador da democracia

Alain Badiou, no capítulo do livro coletivo Democracia, em que estado? “o emblema democrático”, afirma que a democracia figura como o emblema dominante da sociedade política contemporânea.
Nesse sentido, enfatiza a necessidade, ainda que a título de um exercício a priori, de destituir as sociedades desse emblema para melhor se aproximar da sua realidade. Assim, inicia a sua análise ressaltando o caráter circunscrito assumido pela democracia, pois o “mundo” dos “democratas”, na prática, não se estenderia a todos, o que tornaria os seus componentes, na verdade, uma elite conservadora.
Propõe, desse modo, uma releitura daquilo que considera ser, no âmbito da filosofia, a primeira destituição do emblema democrático: o livro VIII da República, no qual Platão denomina “democracia” a um tipo de constituição. A crítica platónica não seria simplesmente reativa e aristocrática. Assim, recuperando o essencial do argumento de Platão, ao qual adere expressamente, Badiou ressalta que o mesmo se prestaria à compreensão e à crítica da democracia nas sociedades atuais.
Assim, esta democracia, propondo um ideal simbólico aos seus cidadãos – a eterna juventude como sociedade do puro prazer dos indivíduos – é cúmplice da limitação assinalada em virtude do princípio que está na base da sua organização – a propriedade privada. A solução consiste em tornar efetiva a ideia comunista autêntica, programando o desaparecimento deste Estado e das suas leis.  
Fiquemos com um excerto deste capítulo:

“... Trata-se para nós do mundo ("monde") e não de todos ("tout le monde"). O mundo, justamente, tal como em aparência existe, não é o de todas as pessoas. Porque os democratas, pessoas do emblema, pessoas do Ocidente, têm aí a situação favorável, e os outros são de um outro mundo que, enquanto outro, não é um mundo propriamente falando. Exatamente uma sobrevivência, uma zona para as guerras, as misérias, os muros e as quimeras. Neste género de mundo, de zona, passa-se o tempo a fazer as suas bagagens, para fugir do horror ou para partir, para onde? Para o local dos democratas, evidentemente, que pretendem governar o mundo e têm necessidade que se trabalhe para eles. Faz-se então a experiência que, bem a quente, sob o seu emblema, os democratas não querem nade de vocês, eles não vos amam. No fundo, há uma endogamia política: um democrata só ama um democrata. Para os outros, vindos de zonas com fome ou com guerra, fala-se primeiramente de papéis, fronteiras, campos de retenção, vigilância policial, recusa da reunião familiar … É necessário estar integrado em quê? Na democracia sem dúvida. Para ser admitido e talvez um dia saudado, é necessário ser treinado em casa a tornar-se democrata, durante longas horas, trabalhando duramente, antes de se imaginar poder vir ao mundo verdadeiro. (…) É um exame tremendo que vos espera! Do falso mundo ao verdadeiro mundo, a licença está no impasse.
Democracia, sim, mas reservada aos democratas, não é verdade?
Mundialização do mundo, certamente, mas sob a condição que o seu exterior mereça enfim de estar no seu interior…
De que república se alimenta a invocação “dos nossos valores republicanos”? A que se criou no massacre dos “communards”? A que se musculou nas conquistas coloniais? A de Clemenceau, o destruidor de greves? A que também organizou a matança 14-18?  A que deu plenos poderes a Pétain? Esta “República de todas as virtudes” foi inventada pelas necessidades da causa: defender o emblema democrático, que sabemos que enfraquece perigosamente, tal como Platão, com os seus guardas filósofos, acreditava segurar elevada ao alto uma bandeira aristocrática já comida pelas traças… “

Jacques Rancière, “L’ emblème démoctratique”, in AAVV. Démocratie, dans quel état ?, éditions La Fabrique, 2009.