Acarnenses é a primeira comédia
escrita por Aristófanes, encenada em 425a.C. Ela traça um retrato caricatural
da cidade de Atenas, num período de crise das instituições democráticas
diretamente relacionada com a guerra do Peloponeso (431-404).
O título da peça refere-se aos
habitantes do demos de Acarnas, ex-combatentes da Maratona, que tinham apoiado
a guerra contra Esparta por as suas terras terem sido saqueadas pelos
guerreiros lacedemónios.
O carácter didático do texto é
expresso pelo próprio autor: «O que é justo também é do conhecimento da
comédia. Ora o que eu vou dizer pode ser cáustico, mas justo é.”
Uma marca deste caráter didático
pode ver-se nos nomes de alguns personagens, que têm uma significação
alegórica: Diceópolis, o personagem principal, significa cidade justa; Anfíteo
é um nome divino.
O Coro vai modulando a sua
posição ao longo do desenvolvimento da intriga, vindo a reconhecer o serviço
que o poeta prestou à comunidade, ao provar o valor da democracia para as
cidades e ao pôr a nú os maus costume de que ela enferma.
O eixo central da comédia é a
relação entre o público e o privado, alimentada pela disputa entre belicistas e
pacifistas quanto à guerra, pelo que a sua mensagem é política, sendo o povo
ateniense representado como um bando de loucos e a democracia como uma farsa.
A peça começa com Diocépolis, um
camponês forçado a migrar para a cidade onde vive em condições precárias, qua
aguarda a reunião da asssembleia onde o tema da discussão de um tratado de paz
vai ser deliberado.
Vendo a praça vazia, lamenta a não
participação do povo na reunião da assembleia , ficando a decisão entregue nas
mãos de políticos profissionais, por regra demagogos, revelando uma contradição
do sistema democrático: os destinos da comunidade, cujo governo pertence a
todos (público) fica, afinal, entregue ao cuidado de poucos (privado), deixando
a porta aberta a todo o arbítrio e venalidade.
Começada a assembleia, Anfíteo faz essa proposta, mas é
rechaçado com ordem de prisão.
Diceópolis tenta reverter a situação, mas sem sucesso, dizendo:
“senhores prítanes, prejudicais o interesse da assembleia ao expulsar esse
homem que deseja concertar uma paz conveniente e fazer que suspendais os
escudos.”
Neste breve momento em que apenas
dois indivíduos se manifestam a favor da discussão de um problema central no
contexto ateniense, agindo no interesse do bem comum da cidade, é logo apagado,
abafado pelo conselho que desviará a sua atenção para os embaixadores que
chegam da Pérsia.
Diceópolis protagoniza a voz da
razão numa sociedade dominada por loucos e safados: estes teimam em alimentar a
guerra com Esparta como pretexto para enriquecerem à sua custa, ficando ele
cada vez mais miserável e pobre.
Diceópolis desmascara de seguida
a função das missões diplomáticas persas, na figura de Pseudartabas, como
fraudes, pois vêm prometer ouro, com a conivência dos embaixadores atenienses,
como manobra de diversão apenas.
Com efeito, a sua ostentação à
custa dos dinheiros públicos, que contrasta com a pobreza da maioria dos
cidadãos, desmente a veracidade da proposta que fazem: por isso, é com palavras
acerbas - “cus moles”- que os incita a não caírem no logro.
Diceópolis é então silenciado, a
reunião é suspensa e irá fazer-se à porta fechada no Conselho (Pritaneu). Com este estratagema, o direito de todos
participarem na tomada de decisão é abolido, confinando a decisão política ao
segredo dos gabinetes.
Compreendendo que a guerra não
lhe convém, Diceópolis conclui uma paz privada com o inimigo, libertando-se da
loucura da cidade. Assim, fugindo de uma ordem pública corrompida, procura um
espaço em que possa ser o senhor absoluto de si próprio.
Os acarnenses ficam enfurecidos
ao descobrirem que Diceópolis fez um acordo de paz com os lacedemônios,
apedrejando-o.
Então ele tenta, com palavras
sensatas, expor as suas razões, defender-se das acusações que lhe são movidas,
mas o seu direito de defesa é contestado com ameaças de ainda maior violência
por parte do coro dos acarnenses:
“Coro: Raios me partam, se te dou
ouvidos!
Diceópolis: Por favor, Acárnicos!
Coro: Vais morrer, já sabes, e
agora mesmo.”
A democracia encontra-se
subvertida na sua essência quando a violência imperante impede que o critério
de resolução dos conflitos seja resolvido com recurso à livre discussão, em
condições igualitárias, no espaço público. É o que está acontecendo: primeiro,
na assembleia; depois é-lhe negado o direito de defesa contra as
acusações dirigidas a um cidadão; finalmente é silenciado e suspensa a sua
proposta de discussão.
Diceópolis então, assumindo o
risco de morte, proclama o que julga ser justo para a cidade e denuncia a
retórica fraudulenta dos oradores que conquistam o povo com o sortilégio
encantatória do seu discurso:
“Diceópolis: (...) Conheço bem a
maneira de ser dos nossos aldeões, sei o prazer que sentem em ouvirem gabar-se
a si próprios e à cidade, por um parlapatão qualquer, com razão ou sem ela. São
estes elogios que os impedem de ver que estão a ser levados. “
A parte final da peça
apresenta-nos Diceópolis reconciliado com os acarnenses e a desfrutar uma
situação económica favorável, onde há lugar para o desfrute dos prazeres do mundo:
“O primeiro semicoro: Não vedes,
cidadãos a extremada prudência e discrição deste homem, que, depois de ter
celebrado as suas tréguas, pode comprar quantas coisas costumam trazer os
mercadores, umas úteis à casa e outras gratíssimas ao paladar?”
Este espaço de vida não admite no
seu seio corruptos, todos os que simulam servir a cidade mas que servem os
seus interessas privados. Enquanto microcosmo de uma totalidade, pode ser interpretado como uma sinédoque cuja significação reenvia para o horizonte da cidade democrática.
A potência heurística desse espaço, onde mora a vida honesta, livre e feliz, leva o coro a reconhecer, por fim, que o tratado de paz é o mais justo para a cidade.
A potência heurística desse espaço, onde mora a vida honesta, livre e feliz, leva o coro a reconhecer, por fim, que o tratado de paz é o mais justo para a cidade.