A senhora de Templin – a Chanceler Angela Merkel - é hoje a papisa da Europa,
o seu magister dixit, de dedo estendido, dita a lei. A diversidade das opiniões
e a complexidade dos problemas com que o espaço europeu e o mundo vivem é mais
um motivo para o seu espírito encontrar (ou pensar que encontra) a linha de
rumo que forneça um enquadramento da sua ação politica.
Mas ela não anda a reboque da história, porque a sua configuração mental
está bem alicerçada, tanto em valores fundamentais quanto em hábitos de
pensamento específicos, factos que aliados à sua personalidade combativa e à
sua grande inteligência a colocaram no papel timoneiro que hoje desfruta.
Estando os destinos da Europa grandemente dependentes desta líder, é urgente
a elaboração de um tentame de psicografia do sujeito, que ajudará sobretudo a
determinar o que dela pode ser expectável. Há que encontrar elementos na
sua formação que estarão a determinar a sua praxis política.
Vou considerar dois: a sua educação luterana e os valores por ela
veiculados; e a sua formação científica na área da química quântica.
O pai de Merkel, que participou ao lado do exército russo contra a invasão
nazi da Rússia, tornou-se pastor luterano da cidade de Templin. Naturalmente,
pela sua participação na guerra do lado soviético e pela sua conceção do lugar
da religião na vida, manteve boas relações, até mesmo de privilégio, com o
regime comunista da RDA, sendo crítico da política da RFA e do processo de
Reunificação. A sua ação no mundo real esgotou-se na ação educacional, tendo
criado uma biblioteca para a comunidade, e no serviço religioso da salvação das
almas.
Esta é a atitude fundamental em relação à política proposta por Lutero, que
deixou assim na sua Igreja um rasto de subserviência e de conformismo em
relação ao poder político e económico, não obstante a coragem legítima revelada
na sua revolta religiosa contra o Papado. Como exemplo do conservadorismo
de Lutero, menciono a sua posição de condenação das revoltas camponesas,
lideradas por Thomas Münzer, contra os abusos dos príncipes. Marx e Ernst Bloch
dão-nos bons enfoques desse acontecimento histórico bem como da dimensão
profética do homem revolucionário.
Lutero considera que a fé é o único meio da salvação e que ela se encontra
nos ensinamentos bíblicos, enquanto Münzer coloca a origem daquela na interioridade
do homem. São duas atitudes opostas em relação à situação do homem no mundo: a
fé para Lutero requer as boas obras, que vem compensar as misérias trazidas ao
mundo pela injustiça que nele há; para Münzer onde a fé mora, aí tem de ser
plantada a justiça, mesmo que por meios revolucionários.
É neste horizonte ideológico que a Chanceler Angela Merkel, ao longo da
infância e da juventude, vai estruturando a sua personalidade, ficando
marcada pelos traços de obediência incondicional a Deus, de dedicação ao
trabalho, de espírito de sacrifício e de rigor no pensamento e na ação.
A par destes valores, manifesta a mesmo
conformismo tacticista do pai em relação à ordem política vigente então na RDA:
esteve envolvida na Freie Deutshe Jugend (a organização da
juventude comunista da RDA), chegando a ser secretária da educação política
desta. E é também significativo desta mesma atitude subserviente o facto de, no
dia em que se celebrava a Queda do Muro de Berlim, ela ficar a trabalhar no seu
laboratório, só aparecendo na rua no fim do trabalho.
A sua formação científica, com
relevância para a matemática enquanto instrumento de descoberta das constantes
presentes no fracionamento da complexidade quântica dos elementos, configurou-a
para um tipo de raciocínio operacional sistémico, segundo o qual as
diferenciações se esbatem e tornam inteligíveis num plano de conjunto. O grande
empenho que pôs sempre no estudo, sempre com excelentes resultados mesmo na
aprendizagem do russo, apenas reforça a ideia de que todas as peças se conjuguem
numa sinfonia harmónica de conjunto.
Por outro lado, há na personalidade de
Merkel um traço dinâmico, com uma provável base genética, que a dispõe para,
quando as circunstâncias o exigem, pessoais ou objetivas, se capaz de decidir
em descontinuidade com o que era esperável.
Foi assim que teve a coragem de se
divorciar do primeiro marido, de quem ficou com o nome Merkel, e de aceitar
entrar na política, numa ascensão progressiva até ao patamar atual. É revelador
deste traço de decisão a presença de Catarina II da Prússia, cuja imagem está
sempre sobre a sua secretária.
Quando se deu a mudança de regime na
RDA, criaram-se as condições objetivas para a transferência destas atitudes
básicas para a nova situação democrática emergente. Merkel vai cada vez mais
aprofundando então a sua vinculação aos ideais democráticos emergentes, que
existirão já muito antes do desabar do Muro, sendo impossível discernir como
foi fazendo esta aprendizagem. Mas o cerne do problema encontra-se na
compleição específica da sua personalidade, que só muda quando circunstâncias
externas a isso obrigam.
Assim, mesmo considerando a sua capacidade de reorientar a sua trajetória
política, o seu modo de pensar pode ser descrito a partir da lei da isocronia
do pêndulo, que estabelece que o tempo gasto por um corpo suspenso por um
fio flexível em torno um ponto fixo, executa movimentos alternados em torno da
posição central, na mesma unidade de tempo.
Merkel, como se fosse um pêndulo, foi obrigada pela história a oscilar
entre dois mundos diametralmente opostos nos seus princípios. O seu ponto fixo
– os seus valores e atitudes fundamentais – continuarão a estar presentes aqui
como antes estiveram noutro lado.
E por isso quando chegou à política, sem para isso estar fadada, foi capaz
de decidir por ela própria esse novo caminho a seguir, mas só pode estar nele
ao seu modo, com a firmeza das posições que assume fundadas na sua convição de
que isso é o mais justo e segundo procedimentos que julga pragmáticos, que
herda de toda a sua formação, e fundamentalmente do seu trabalho científico no
laboratório.
A cosmovisão metafísica que é a sua (em que o sim e o não se excluem mutuamente),
de base religiosa, e o quadro científico positivista a partir dos quais pensa e
interfere nos acontecimentos históricos colocam as seguintes e magnas questões:
- será esta grelha de análise, mesmo convocando o apoio de modelos de volatilidade
estocástica, capaz de interpretar adequadamente a complexidade das relações
entre os homens, nos seus vários domínios, podem ser interpretados?
- não o sendo, cairá Merkel na conta de que o tempo
oportuno da grande decisão está à beira do esgotamento?
O dia-a-dia dos europeus, mesmo que o modelo de Merkel seja racional (o equilíbrio
das finanças como condição do crescimento económico), vai-se agravando, o que
prova que aquela receita que se vai seguindo não é eficaz.
É preciso experimentar novas soluções para encontrar uma linha de resolução
do problemas que nos afetam. Não há problemas insolúveis na vida das sociedades:
o que é preciso é a ousadia inventiva de encontrar as melhores respostas a
partir dos instrumentos de análise que se revelaram com sucesso noutras
situações críticas.
Assim, só a luta social e a boa argumentação política, numa conjugação de
esforços multilaterais, poderão operar o clinamen que desviará
a rota do pêndulo de Merkel em benefício da Europa.