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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Para uma ontologia paradoxal do corpo, por Eduardo Prado Coelho: Parte I


O "primeiro corpo" foi definido nestes termos : “é aquele que é um quase objeto, que nos é o mais próximo possível da nossa intimidade. É o corpo que nos tem”. Vários autores falam do corpo neste sentido: tanto no domínio da literatura (por ex. Vergílio Ferreira) como na filosofia (Merleau-Ponty, Michel Henry, Maine de Biran).

O exemplo escolhido pelo conferencista como exemplificação o escritor português, que pensa e escreve a partir de uma tipologia e de uma linguagem ontológicas de matriz fenomenológica (Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty).
Desde a Aparição (1959) que este enquadramento se patenteia, por exemplo quando refere que a descoberta da nossa individualidade é uma “aparição”, dotada de evidência apodítica e surge sob o modo de um abalo original: “Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, refletido no grande espelho do guarda- fatos (...). Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto” 
Esta filiação fenomenológica deste escritor não se altera substancialmente ao longo da sua obra, manifestando-se com um pendor mais romanesco ou mais filosófico consoante a obra em causa.  O corpo é sempre dado numa intuição dotada de evidência e é nele que reside o “eu”. Esta solidarização do corpo por com o “eu” surge reafirmada em Invocação ao meu Corpo (1969): “Regressas ao teu corpo, dizes “sou eu” (p.70); e “Regresso a mim, ao meu “corpo” onde todo o milagre aconteceu (…) na brevidade de um pequeno ser, “eu”. E todavia (…) Trago em mim a força monstruosa de interrogar.”( p.15).
Os limites desta abordagem fenomenológica do corpo são de seguida referidos. Com efeito,a fenomenologia tem vindo a ser erodida de vários horizontes: tanto a partir do interior do movimento, como o faz Lévinas,  e do seu exterior, por ex. José Gil, ambos convocados nesse momento.
Emmanuel Lévinas usa o método fenomenológico até à exaustão dos seus limites, invertendo-o: a interação entre o sujeito e o outro é assimétrica, na medida em que o rosto interpela e convoca aquele à responsabilidade aquém da consciência, não podendo tal mandamento ser um fenómeno do qual se tem uma intuição. O plano ontológico da consciência fica subordinado a um plano de determinações que lhe são anteriores, aquém ou além da consciência.
José Gil a partir de outros pressupostos teóricos (sobretudo Deleuze) vai na sua obra A imagem nua e as pequenas perceções (1996) considerar que nos encontramos mergulhados num mundo de imagens-nuas produtoras de “pequenas percepções”. Estas estão associadas ao que designa de “pensamentos voadores”, que são conteúdos não-conscientes de sentido, que impulsionam o espírito procura das suas significações verbais, preenchendo o seu vazio.
Este conceito de imagens nuas, que nascem a partir do inconsciente e das forças que o estruturam, vem modificar os conceitos de visível e de invisível da fenomenologia de Merleau-Ponty. Assim, para Gil o invisível não é a suspensão da sua apreensão na presença do visível, mas é uma apreensão posta ao contrário da do visível.
 A consequência decorrente da leitura de Gil é clara: a abordagem fenomenológica do corpo perde funcionalidade ao não tomar em linha de conta este fundo energético – o significante flutuante – a partir do qual se pode ou deve fazer a semiose do visível, produzindo a significação inteligível dos movimentos e das expressões em que o corpo se manifesta.

Para uma ontologia paradoxal do corpo, por Eduardo Prado Coelho: introdução

A Dança - Matisse

Prado Coelho interveio no espaço público português em vários âmbitos: na docência académica de Teoria da Literatura; na análise crítica de obras de literatura, de cinema e de dança; na intervenção cultural com artigos de opinião, com incidência na problematização da atualidade política; na criação ensaística; em comunicações de seminários; e no desempenho de funções culturais em França. 
Em 06/11/1997 teve lugar o 2º Encontro sobre o corpo “As Margens do Corpo”, na Faculdade de Motricidade Humana, tendo participado o ensaísta com a conferência “Corpo, cultura e ideologia”.

Estive presente com o Paulo Prudêncio (que no seu blog "Correntes" se referiu já a esse Encontro), a seu amável convite, e guardo uma memória grata do acontecimento. E vou procurar rememorar esse momento como tributo pessoal a Eduardo Prado Coelho, que infelizmente já não está entre nós.

Recorro para esse desiderato a alguns escassos apontamentos que guardei, explicitando a arquitetura de conjunto da conferência e descrevendo o processo seguido na sua explanação, com a resenha do seu conteúdo e das referências convocadas, que vão clarificando o horizonte de inteligibilidade sobre o corpo assumido pelo autor.

Aquela penúria obriga-me a incluir neste texto alguma passagem dos autores citados, que considere oportuna, sem distorcer ou subverter o que então foi dito. 

Sempre com recurso à citação de autores representativos do que tematizava, a conferência decorreu em três momentos principais: primeiro, focalizou as principais interpretações a que o tema tem sido sujeito; a seguir, trabalhou a relação do corpo com o espaço; finalmente, debruçou-se, sem menos detença, na relação corpo-eu.

 O orador orientou-se por um procedimento didático que facilitou a compreensão da informação fornecida e que, dada a relação feita de diferenciações, com ruturas e continuidades, entre os diferentes e singulares sistemas de significação, inculcou no auditório a noção de que a semiose do problema do corpo é um fieri, a continuar ad infinitum.

Esteve presente nesta démarche de Prado Coelho o seu dispositivo crítico, que se escora numa constelação de autores confluentes na validação da pertinência  (ontológica, epistemológica e semiótica) dos  princípios da alteridade e da diferença em detrimento da mesmidade e da unidade (Peirce, Blanchot, Deleuze, José Gil, Clarice Lispector, Duras et alii; cf. Os universos da Crítica, Cap. 18 “E tudo/o resto – é literatura”, pp. 479-526).

Neste sentido, desenharam-se duas matrizes concorrenciais em função das quais girou a exposição: a matriz fenomenológica, que se inspira em Husserl e remotamente em Descartes; e a matriz freudiana e marxista, presente em vários autores referenciados e que ocupou o maior espaço da comunicação.

 Logo no início, o conferencista fez um paralelo entre o discurso da ciência e o discurso da literatura: aquele toma o corpo como uma máquina, sendo a investigação conduzida com recurso à matemática (por ex. G. Borelli, anatomista francês do século XVIII), enquanto o segundo vê o texto literário como processo de tradução, num registo estético, do corpo nos seus vários atos expressivos de uma individualidade própria com uma determinada enquanto expressões e das várias modalidade em que se exprime (ex.: Balzac). São duas abordagens irredutíveis e desenhou-se desde logo o espaço em que o autor se iria mover: ciências humanas, filosofia e sobretudo a literatura.

Seguidamente, explicitou um conjunto de conceitos necessários para se proceder a uma reflexão ontológica sobre o corpo: ao movimento é à expressão já referidos, acrescentou o esforço e a instalação, subordinados às categorias do tempo e do espaço.

Neste horizonte, propõe a tese de Franços Dagognet: “le corps un et multiple”, que faz sua sem mais aclaramentos. A própria multiplicidade do corpo se manifesta igualmente nas várias narrativas que tematizam o corpo, referenciando aquilo a que chamou “quatro corpos”.  Na convicção, talvez, de que se possa revelar o sentido deste dito de Beckett: “Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro. Mover-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Não. Sair nenhum. Voltar nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado”. (“Worstward ho”, Pioravante marche)