S. António de Lisboa (ou de Pádua, para os italianos) é santo de
devoção popular não apenas no nosso meio, mas noutros lugares. A
qualidade da sua prosa e do seu pensamento mereceriam outra atenção, não
apenas dos leitores (se houvesse tradução da língua em que escrevia, o
latim medieval) mas também dos estudiosos.
Sobre este aspeto do seu
pensamento, profundamente inserido no quadro da mentalidade católica
então instituída e do seu modo de interpretar a Escritura (a doutrina
dos quatro sentidos), pretendo chamar a atenção para a visão antonina do
judaísmo.
No sermão da Ressurreição do Senhor, proferido por volta
de 1230, o doutor da igreja parte da citação bíblica “a amendoeira
florirá, o gafanhoto engordará e a alcaparra dispersar-se-á” (Eccl. 12,
5), para explicitar os vários sentidos que aí se encerram: o alegórico, o
moral e o anagógico.
Quando esclarece o sentido alegórico da
expressão (isto é, a ideia universal para a qual a palavra reenvia) da
expressão, o tema do judaísmo vem à tona. Nestes termos:
“no
gafanhoto é refigurada a igreja primitiva que, com as flores da
ressurreição do Senhor, aumenta e enche-se de alegria maravilhosa. (…)
Quanto mais a igreja se aumentava tanto mais a sinagoga se
desagregava.(…)
“A casa de David é a igreja; a casa de Saúl, que se
interpreta “aquele que abusa”, refigura a sinagoga, a qual, tendo
abusado dos dons especiais de Deus, recebeu o libelo do repúdio e do
abandono e abandonou o tálamo do esposo legítimo.”
Sabemos que este modo de pensar era o padrão dominante, conforme ao que
ficou estabelecido no IV Concílio de Latrão (1215), que consagrou uma
série de medidas antijudaicas. E este “ovo da serpente” era, afinal, a
legitimação ideológica ao processo de ostracização dos judeus que estava
em marcha.
Não sei se, no contexto de então, para quem estava tão
comprometido com a igreja dominante, era possível pensar de outro modo.
Mas sei que a irrupção da consciência de si como indivíduo, capaz de
pensar por si próprio sem subordinação às cangas da instituição, ainda
estava na latência. E se é assim, tenho muita pena da cegueira imposta a
cada um de nós pela nossa condição histórica, que nos turva a lucidez
para ver mais longe e mais alto e nos torna coniventes, talvez
involuntariamente, dos crimes que alimentam a história.
PS:
este ajuste de contas com o Santo estava por fazer, desde há algum
tempo! A ocasião agora tem a ver com os festejos antoninos de ontem, em
Lisboa. Penso que é necessário ir mais longe e compreender o homem na
sua historicidade, no que fez, no que disse, no que escreveu, de modo a
ir ao encontro da verdade da sua vida real.