A Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra promoveu a Conferência "Valores humanos, justiça e política económica", em 14 de Março de 2011, sob a égide e com a presença de Amartya Sen.
Para enquadrar o pensamento deste autor sobre a justiça, vou agora, como prometi, fazer um resumo da obra recém editada A ideia de Justiça. Para além do prefácio e da introdução, a obra estrutura-se em quatro partes:
- 1ª As exigências da
Justiça; 2ª: Formas de Argumentação Racional; 3ª: Os Materiais da
Justiça; 4ª: Argumentação Pública e Democracia.
Em termos estruturais, este
livro tem como eixo central a oposição, que Sen identifica no iluminismo, entre
éticas transcendentais (Rousseau, Kant e Rawls) e comparativas (Adam Smith,
Condorcet, S. Mill e Marx)
Na complexidade das
sociedades modernas, coexistem múltiplos interesses e diferentes posicionamentos
morais, todos legítimos. A conflitualidade gerada pela pluralidade conduziu ,
por parte de pensadores de inspiração iluminista, a procurarem definir
critérios de justiça tendo por base a argumentação racional no espaço público.
Neste espaço da teoria,
surgem duas correntes:
- a do “institucionalismo
ético” (que prolonga a orientação das éticas transcendentais do iluminismo, sendo Rawls o autor mais representativo), a corrente dominante, considera que a busca de uma sociedade justa
se alcança por “enfoque nos arranjos sociais”, servindo a teoria da
sociedade justa como norma e medida do grau de aproximação da sociedade real;
- a da “comparação focada em
realizações” (prolonga as éticas comparativas iluministas, na qual Sen se filia), não crendo na ficção sociedades
perfeitas, procura critérios de orientação das escolhas capazes de ampliar a justiça
social e ao mesmo tempo minimizar as injustiças intoleráveis.
Sen reafirma a sua
vinculação ao projeto emancipatório iluminista, reconhecendo ter colhido também
inspiração nas ideias do reformador Akbar, imperador muçulmano que governou a
Índia na década de 1590, o qual, num quadro de grande conflitualidade
religiosa, logrou, pela procura do mais racional, vencer o dogmatismo da
tradição e instituir o princípio da liberdade religiosa e do tratamento
igualitário de cada religião.
Entrando numa analise de
conteúdo, as partes I e II do livro, que se inspiram do enfoque comparativo dos
autores referidos, visam criar as condições epistemológicas para a construção
de um modelo de justiça que articule os direitos humanos universais com a
humanidade na sua pluralidade.
Sen parte da ideia da
“justiça como equidade” proposta pela teoria neocontratualista de Rawls,
aceitando-a como princípio.
De seguida, procede a uma
análise dos pressupostos e da metodologia seguida por Rawls de modo determinar
os limites e improcedências da teoria.
A natureza contratual deste
modelo, em que Rawls considera que na “posição original” todas as pessoas,
tomadas individualmente, escolhem os mesmos princípios de justiça, não tem
validade porque pode ser refutado em determinadas situações.
Esta afirmação pressupõe que
uma sociedade é uma entidade discreta e autosuficiente, fechada sobre si
própria, obliterando que cada sociedade se encontra numa relação de
interdependência com as demais, de modo que as decisões de cada uma podem
interferir (muitas vezes negativamente) na vida das outras.
A consequência da dicotomia
cavada entre o interior e o exterior de uma sociedade deixa os que estão de
fora no momento do contrato – estrangeiros, gerações futuras, natureza –
privados de fazer valer os seus interesses e direitos.
Em relação à pretensão de
Rawls de edificar uma teoria transcendental (universal e necessária), Sen questiona
a sua possibilidade e a sua necessidade. Pois a diversidade das sociedades,
diferenciadas pela história e pela cultura, entra em choque com a asserção de
que só há um tipo de sociedade justa – a liberal, baseada nos dois princípios
de justiça que propõe.
Em relação à importância
atribuída por Rawls à criação de instituições justas, como condição para
existirem cidadãos justos, Sen contrapõe, recorrendo à literatura
sapiencial sânscrita bem como à tradição europeia comunitarista (Adam Smith,
Marx …), que as realizações sociais não são apenas um produto das instituições
justas, mas de muitos outros fatores culturais, históricos e sociais.
Na III Parte, “Os Materiais
da Justiça”, Sen, ancorado no terreno da análise económica clássica, demonstra
a insuficiência da base de informação da aproximação utilitarista, que se
baseia na análise custo/benefício, ao tema da justiça
O que torna necessário
proceder a um alargamento daquela base de informação, propondo Sen um critério
de pensamento e de avaliação que designa por “aproximação pelas capacidades”
("capability approach").
As “capacidades humanas” dos
agentes variam em função da sua condição social (classe, etnia, nível de
educação, …) e das suas necessidades.
Deste modo, a noção de
bem-estar, que é a pedra de toque da teoria neoclássica, não pode ser definida
in abstrato, mas tem de incluir o conjunto das variáveis em jogo, tomando em
linha de conta a diferença em que se encontram os agentes quanto às
necessidades, possibilidades e realizações. O poder político tem de tratar de
modo diferente o que é diferente
Assim, no âmbito desta visão
encontra-se a dimensão ética, ligada às exigências de justiça social.
A noção de bem-estar fica
assim referida não apenas aos bens inerentes à dignidade da pessoa (saúde,
educação, mas compreende também o modo como cada pessoa pode converter estes
recursos em liberdade real.
Cabe ao poder político e aos
cidadãos a tarefa da construção, a partir deste novo paradigma, de uma
sociedade mais justa.
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