A putativa solicitação de um relatório ao FMI sobre a
reforma do Estado por parte do governo português leva a supor a existência de
várias possibilidades de justificação para a atitude: o ter considerado o
Governo que o documento que daí viesse seria cientificamente credível para um
aconselhamento neste domínio; o ter visado fundamentalmente uma captatio benevolentia por parte do FMI,
para reafirmar mais uma vez a subserviência agradecida do pobre de mão estendida;
o ter pretendido um texto que servisse de cobertura “técnica”, sabendo-se a
orientação ideológica daquela instituição, de pendor neoliberal, para o seu
desejo de subversão social e constitucional, e como garantia para não ter de
soletrar tal desejo a medo.
Considero que a primeira possibilidade, pelos autores de
“estudo” e pelas referências que convocam logo no preâmbulo (Musgrave, mais
sério, e Buchanan, um ideólogo disfarçado de economista) é falsa, pois o
documento não é “tecnicamente correto e equilibrado” (como diz o Governo).
Logo, trata-se de um texto de pseudo-ciência económica, mais
ideológico do que técnico, que serve ao Governo de cobertura para o que
desejaria fazer, mas não vai ser capaz de fazer. E que, por outro lado, serve
também a intenção indicada na segunda possibilidade.
Se algumas ideias ou propostas são putativamente aceitáveis
como matéria de reflexão, embora num quadro referencial diverso, em muitos
outras instâncias poderia o Governo inspirar-se com mais acerto e sem termos de
ser confrontados com um argumento de terror, apontando, com a espada de
Dâmocles, às nossas cabeças.
Para argumentar o meu ponto de vista, vou explicitar as linhas
de pensamento de Buchanan – a sua matriz ideológica conservadora e aspetos da
sua conceptualização da economia - na medida em que é ele, na minha hipótese,
mais do que Musgrave, quem está subjacente ao articulado do documento do FMI. O
que circunscreve significativamente o alcance deste comentário, que não entra
na análise do texto, mas intenta situar-se na sua montante, na explicitação de
alguns pressupostos ideológicos que o subtendem.
James Buchanan é um dos mais influentes economistas da
escola económica neoliberal, que trabalha com elementos da Escola Austríaca e
da Escola de Chicago, e tomou importância por ter contribuído para a construção
do edifício da “teoria da escolha pública” (“Public Choice”) e por ter sido
laureado com o Prêmio Nobel de Economia, em 1986.
Segundo esta escola, as políticas do Estado Social enfermam
de três problemas:
- os custos crescentes das políticas sociais são tendencialmente
insuportáveis e perniciosos para os fundos públicos, gerando inflação e dívida;
- os efeitos dessas políticas sobre os valores e os comportamentos
de indivíduos, dos grupos sociais e das empresas são
prejudiciais porque não incentivam a iniciativa individual nem estimulam a
criação de riqueza;
- a máquina administrativa para a implementação das
políticas sociais, pelo seu gigantismo, acaba por ter efeitos negativos tanto
na tomada da decisão como nas instituições democráticas.
Diagnosticada a doença, o remédio proposto é a supremacia
do mercado. Pois, só este garante,
mediante a alocação de recursos, a criação de riqueza e a sua distribuição sob
a forma de bens e de serviços de um modo eficiente e promovendo a justiça.
Ao invés do mercado, da intervenção da autoridade pública só
decorrem distorções (já assinaladas) no bom funcionamento do mercado
Por um lado, leva a que as empresas desviem recursos produtivos
para atividades improdutivas, por ex. o financiamento de campanhas eleitorais
visando tirar partido ou “colonizar” a instituição favorecida. Por outro lado,
o Estado, protegendo desmesuradamente os direitos adquiridos, é negativo para o
mercado, porque limita o âmbito da sua intervenção (a escola e a saúde públicas
estão-lhe barradas), protege o trabalho em excesso, tornando-o pouco flexível,
estimula uma mentalidade de dependência do Estado e não acicata o investimento
dos ricos.
Para explicitar o carácter conservador deste neoliberal,
fá-lo-ei em três momentos.
Num primeiro momento,
transcrevo um excerto que permite pôr ante os nossos olhos o discurso
moralista, retrógrado e catastrofista de Buchanan, a apelar adequada medicina
corretiva: “durante varias décadas (...) a nossa ordem moral tem estado num
processo de erosão. Um número cada vez maior de pessoas parece terem-se tornado
anarquistas morais, perdendo o sentido de respeito mútuo pelos outros, sem qualquer
propensão a comportar-se segundo regras e códigos de conduta generalizáveis.” (Buchanan,
1986)
A mesma forma mentis
do autor vem já de trás, como esta passagem de outra obra deixa transparecer: (...)
(tem-se observado) uma erosão generalizada na conduta pública e privada, atitudes
crescentemente liberalizadas no que diz respeito a atividades sexuais, uma
vitalidade declinante da ética puritana do trabalho, deterioração na qualidade
dos produtos (...), corrupção difundida tanto no setor governamental quanto no
privado, e, finalmente, aumentos percetíveis na alienação dos eleitores diante
do processo político. (Buchanan & Wagner, 1977).
Num segundo momento, destaco a identificação das causas
principais da erosão da ética puritana referida, tomando por base a obra Democracy in deficit: the political legacy of Lord Keynes (1999). Na substância, é um libelo acusatório ao modelo da democracia
de massas na sua forma atual, cuja
natureza a torna ingovernável, e à macroeconomia keynesiana, que não
compreendeu o que era a economia ao ter pensado que as variáveis económicas (emprego, inflação preços) podiam ser previstas e
controláveis e que assim distorceu o funcionamento do mercado e a sua
capacidade autoregulativa.
E, por isso, considera Buchanan, o que os economistas que
seguiram na peugada de Keynes disseram sobre a crise de 2008-9 foi completamente
“irrelevante e inoperante”: “[..] So much of economists have said , and say now, is
exposed as irrelevante and essencial useless. Economists are embarassed by
their inability to offer “scientific” explanations for the 2008-9 crises or to
advance suggestions to reform”, in Economists
Have No Cloths”(site: http://www.rmm-journal.de/downloads/010_buchanan.pdf)
Sejamos aqui irónicos: só o iluminado Buchanan, talvez
assistido por uma graça especial do céu – ou talvez do diabo, pois também este é
Lucifer (o que traz a luz) – foi o chamado para perceber realmente tudo o que
se passa neste terreno e para comunicar urbi
et orbe a boa nova salvífica.
Ora o nosso aprendiz de feiticeiro esclarece-nos, no ensaio anterior
referido, o que é a economia: “uma norma que institui um conjunto de trocas
interligadas que conduzem a resultados, mensuráveis a posteriori, mas não
previsíveis nem controláveis a priori” “The economy, in some inclusive
inclusive definitional sense, is perhaps
best described as na order that consists of na interlinjked set of exchanges,
simple and complex, from which outcomes emerge that may in some respects be
meaningfully measured but cannot be chosen, and thereby controlled, by
concentrated decision makers.” (cf. ib.idem)
Aqui se encontra o cerne do ataque a Keynes. O valor dos
resultados que se alcançam e as suas implicações sociais não entram em linha de
conta nesta definição, porque afinal eles são uma função da lógica do mercado.
Acreditando nas virtualidades endógenas deste, a resultante só pode ser a maximização
da utilidade geral.
Esta crença no valor absoluto e exclusivo do mercado é uma
reencarnação duma velha narrativa, que a história e a ciência económica já
varreram como lixo perigoso da face da terra. Mas o Nobel Buchanan continua a
acreditar na Fénix encantada.
Num terceiro ponto, refiro a medicina que Buchanan propõe
para a redenção através do mercado, que passa por um conjunto de mudanças
constitucionais e legais que limitem o âmbito de ação do Estado, tanto na sua
esfera económica como na social.
Este aspeto encontra nesta passagem do mesmo ensaio a seguinte explicitação: “o caminho pragmático (a
seguir) envolve esforços para mudar os parâmetros da política e para gerar
resultados que diferem dos correntemente observados ou produzidos, por existir
ou não um conjunto de normas, pode não cumprir o que parece ser requerido aqui.
Uma mais dramática revolução constitucional pode ser necessária. “As noted, the
strictly pragmatic route that involves efforts to shift policy parameters so as
to generate outcomes that differ from those currently observed, as produced by
the existing (or nonexisting) set of rules, may not accomplish what seems to be
required here. A more dramatic constitucional revolution may be necessary.”(cf.
“Constitutional Revolution?” id.ibid.)
Só pois com mudanças profundas na ordem jurídica do Estado
pode a moralidade fiscal, ferida de morte pelas políticas económicas de raiz
keynesiana, renascer sob a forma de restrições deliberadas em direção a um
horizonte pré-keynesiano.
Afinal, é neste retrocesso ao passado, quando o Estado se
limitava ao serviço da economia mediante a criação das condições operacionais (militares,
judiciais, educativas e obras públicas) ao bom funcionamento
daquela.
Esta revolução constitucional, se necessária, deveria
incluir uma norma que obrigasse os políticos ao retorno ao princípio ético de
orçamento equilibrado, cuja violação seria objeto de sanção tanto interna como
externa por parte dos decisores políticos. E para que o orçamento seja
equilibrado é preciso que se verifique uma equiparação entre as despesas do
Estado e as receitas dos impostos e taxas.
Num quarto ponto, o pensamento Buchanan sobre a dívida pública
é muito significativo: há uma dívida pública boa, que não afeta a economia,
quando os títulos são comprados com a intenção de um ganho futuro. A
legitimação do papel do Estado na criação do capital financeiro parece-me
clara. Para Buchanan é perfeitamente legítimo: “A economia […] não sofre nenhum sacrifício ou encargo quando a
dívida pública é criada [podendo um título de dívida ser adquirido por um
comprador] … O facto de que os recursos económicos são abandonados quando a
despesa pública é feita não demonstra a existência de sacrifício ou encargo
para nos membros do grupo social… Não é o comprador de títulos de dívida que
sacrifica quaisquer recursos económicos no
processo. Ele faz uma troca presumivelmente favorável deslocando o curso
temporal do seu resultado.” (“If an individual
freely chooses to purchase a government bond, he is, presumably, moving to a
preferred position on his utility surface by so doing. He has improved, not
worsened, his lot by the transaction . .
. The economy, considered as the sum of
the individual economic units within it, undergoes no sacrifice or burden when debt is
created. . . . The fact that economic resources are given up when the public
expenditure is made does not, in any way, demonstrate the existence of a sacrifice or burden on individual members
of the social group. . . . It is not the bond purchaser who sacrifices any real
economic resources anywhere in the process. He makes a presumably favorable
exchange by shifting the time shape of his income stream.” (cf. Buchanan, Public Principles of Public Debt, 1958)
Nesta forma de pensar faz-se uma legitimação do papel do Estado: sempre que as suas decisões
não afetam a economia e podem favorecer os interesses individuais, então tem
carta branca para funcionar. Mas, interrogo, o Estado fica a ganhar na parada?
Não sendo economista, não posso responder assertivamente, mas intuitivamente
penso que não.
Num quinto ponto, refiro o método de diagnóstico da situação
existente – “a procura de rendas” (“rent-seeking”) - segundo o qual as
políticas públicas e as estratégias macroeconómicas das democracias de massas,
pelas razões anteriormente referidas, acabam por atribuir aos indivíduos e às
empresas vantagens de posições por artifícios legais, em troca de favores
monetários ou de apoio político.
Transcrevo uma passagem onde o instrumento de análise da "rent-seeking"
se expõe:“ (…) o que deveríamos prever quando a política cria oportunidades de
lucros ou rendas? O investimento será atraído em direção a essas oportunidades
(…) e engendrará tentativas de acesso a rendas (…) e haverá desperdício de
recursos em investimentos destinados a assegurar a fatia favorecida. […] Como a
expansão moderna do Governo oferece mais oportunidades para a criação de
rendas, devemos esperar que o comportamento maximizador de utilidade dos
indivíduos os leve a desperdiçar tais recursos na tentativa de assegurar “rendas”
ou “lucros” prometidos pelo Governo.” (Cf. Buchanan, “The economic Theory
of Politics Reborn”, in Challenge, 31 (2), 1988)
Acerta na mouche, neste ponto, Buchanan. A corrupção da
política nas nossas democracias é um facto bem real. Por exemplo, em Portugal, aí
vão alguns exemplos: os gestores dos
fundos imobiliários que dominam a política fiscal são nomeados pelo sistema
financeiro; cerca de 1/3 dos deputados têm ligações ao mundo dos negócios;
grandes grupos de advogados, que somam contam chorudas pelos seus pareceres ao
Governo, são supervisores do Banco de Portugal; o Estado celebrou contratos com
setores privados que potenciaram a dívida, sem solução à vista (caso de muitas
PPP); há situações de benefício fiscal para o sistema financeiro; há capitalizações
para a banca sem a garantia de adequado benefício nem para o Estado nem para a
economia (a propósito, alguém sabe explicar a recente implicação do Governo no
aumento de capital do Banif); continuam a manter-se mordomias para elementos de
sectores profissionais mais influentes …
Mas uma coisa é a virtualidade do método para a correção dos
vícios de um Estado; outra coisa é o seu uso para subverter a natureza do
Estado. Ora, Buchanan usa este método para este propósito, como se constata
pelo que se referiu nos pontos anteriores sem exceção.
Assim, a crise por que passamos exige uma reforma do Estado,
sem dúvida. Mas não nos termos em que o relatório aponta, pondo em causa
aspetos fundamentais do Estado Social. Seguir este modelo, que tem por base o
magistério de Buchanan, seria “escovar a história a contrapelo”, fazendo tábua
rasa do adquirido civilizacional. A crise tem soluções, difíceis e duras, mas
não é por este caminho do terror que se encontra uma solução compatível com as
exigências de liberdade efetiva e justiça social, património inalienável da
nossa civilização.