terça-feira, 30 de julho de 2013

“Como a arte de furtar é muito nobre”(1652): um libelo acusatório contra a corrupção ativa



“Mais fácil achou um prudente que seria acender dentro do mar uma fogueira, que espertar em um peito vil fervores de nobreza. Com tudo ninguém me estranhe chamar nobre à arte, cujos professores por leis divinas e humanas são tidos por infames. Essa é a valentia desta arte, como a dos alquimistas, que se gabam que sabem fazer ouro de enxofre: de gente vil faz fidalgos, porque aonde luz o ouro, não há vileza. Além de que não é implicação acharem-se duas contrariedades em um sujeito, quando respeitam a diferentes motivos. Que cousa mais vil, e baixa, que uma formiga! Tão pequena, que não se enxerga; tão rasteira, que vive enterrada ; tão pobre, que se sustenta de leves rapinas! Que cousa mais ilustre que o Sol, que a tudo dá lustre; tão grande, que é maior que a terra; tão alto, que anda no quarto céu, tão rico, que tudo produz! E se vê a maior nobreza com a maior baixeza em um sujeito, em uma formiga.
Baixezas há que não andam em uso, porque são só de nome: e nomes há, que não põem nem tiram, ainda que se encontrem, porque se compadecem para diferentes efeitos. Fazia doutrina um padre da Companhia, no pelourinho de Faro: perguntou a um menino como se chamava? Respondeu: “Chamo-me, em casa Abraãozinho, e na rua Joanico.” Assim são os ladrões: na Casa da Suplicação, chamam-se infames, quando os sentenciam, que é poucas vezes: mas nas ruas, por onde andam de contínuo em alcateias, têm nomeadas muito nobres, porque uns são Godos, outros chamam-se Cabos e Xarifes outros: mas nas obras todos são piratas.
Mais claro proponho e deslindo tudo. A nobreza das ciências colhe-se de três princípios. O primeiro é objecto, ou matéria, em que se
ocupa; segundo, as regras e preceitos de que consta; terceiro: os mestres e sujeitos que a professam. Pelo primeiro princípio, é a teologia mais nobre que todas, porque tem a Deus por objecto. Pelo segundo, é a filosofia, porque suas regras e preceitos são delicadíssimos e admiráveis. Pelo terceiro, é a música, porque a professam anjos, no céu, e, na terra, príncipes. E por todos estes três princípios é a arte de furtar muito nobre, porque o seu objecto, e matéria em que se emprega é tudo o que tem nome de precioso. As suas regras e preceitos são subtilíssimos e infalíveis: e os sujeito e mestres que a professam, ainda que mal as mais as vezes, são os que se prezam de mais nobres, para que não digamos que são senhorias, altezas e majestades. (...)
E prouvera a Deus, que não tivera tanto de nobre, não só pelo que lhe concedemos de suas subtilezas, senão também, pelo que lhe negam outros da matéria, em que se ocupa, e sujeitos, em que se acha; pois vemos, que a matéria é a que mais se estima, ouro, prata, jóias, diamantes, e tudo o mais que tem preço; e os sujeito em que se acha são, por meus pecados, os mais ilustres, como pelo discurso deste tratado em muitos capítulos iremos vendo. E para que não engasgue algum escrupuloso nesta proposição com a máxima, de que não há ladrão que seja nobre, pois o tal ofício traz consigo extinção de todos os foros da nobreza; declaro logo que entendo o meu dito segundo o vejo exercitado em homens tidos e havidos pelos melhores do mundo, que no cabo são ladrões, sem que o exercício da arte os deslustre, nem abata um ponto do timbre de sua grandeza”

Autor anónimo, Arte de Furtar (1652), Capítulo II, pp. 25-27, Editorial Estampa.

Comentário breve:

A “nobre arte de furtar” tratada neste livro, que estava em curso em Portugal, abrange o período do domínio espanhol (1580-1640) até ao começo do reinado de D. João IV, a quem a obra é dirigida na intenção de que este viesse a desenvolver uma ação de saneamento da corrupção galopante em que o país estava mergulhado.
Trata-se pois de um admirável documento histórico, que elenca os grupos sociais envolvidos nessa prática de locupletação ativa: mercadores do comércio de além-mar; fidalgos; agentes da justiça (juízes, advogados, procuradores, conselheiros, escrivães, tabeliães); governadores locais (corregedores, alcaides); oficiais mancomunados da Fazenda; traficantes de escravos; clérigos; e naturalmente o reino de Castela (controlo alfandegário; tributação sem audição das Cortes; extorsão ao clero, ordens militares, igrejas, clérigos).
A proposta do livro é transparente, sempre atual: o ofício do príncipe é assegurar a paz entre os vassalos, que se alcança mediante o respeito das leis. O que obriga o príncipe a intervir de modo a impedir que a riqueza possa grassar pela sociedade à rédea solta. Pois, como diz Aristóteles, “… mais mal fazem à República os ricos, no tempo de paz, que os pobres, porque com o poder se eximem da obediência das leis, e com a ociosidade estão prestes para motins, e com as riquezas aptos para os sustentar. Impedem a reformação dos costumes, relaxam a modéstia do povo com gastos supérfluos no comer e no vestir, incitando o vulgo a desobedecer.”(op. cit. p. 112)   



segunda-feira, 29 de julho de 2013

“Fábula de Anfion”: um poema de João Cabral de Melo Neto sobre a génese da criação poética


1. O deserto.
( Anfion chega ao deserto)

No deserto, entre a
paisagem de seu
vocabulário, Anfion,

ao ar mineral isento
mesmo da alada
vegetação, no deserto

que fogem as nuvens
trazendo no bojo
as gordas estações

Anfion, entre pedras
como frutos esquecidos
que não quiseram

amadurecer, Anfion,
como se preciso círculo
estivesse riscando

na areia, gesto puro
de resíduos, respira
o deserto, Anfion.


Ali, é um tempo claro
como a fonte
e na fábula.

Ali, nada sobrou da noite
como ervas
entre pedras.

Ali, é uma terra branca
e ávida
como a cal.

Ali, não há como pôr vossa tristeza
como a um livro
na estante).

*
Sua flauta seca

Ao sol do deserto e
no silêncio atingido
como a uma amêndoa,
sua flauta seca:

sem a terra doce
de água e de sono;
sem os grãos do amor
trazidos na brisa,

sua flauta seca:
como alguma pedra
ainda branda, ou lábios
ao vento marinho.
*
O sol do deserto

(O sol do deserto
não intumesce a vida
como a um pão.

O sol do deserto
não choca os velhos
ovos do mistério.

Mesmo os esguios,
discretos trigais
não resistem a

o sol do deserto,
lúcido, que preside
a essa fome vazia)
Anfion pensa ter encontrado a esterilidade que procurava.
Sua mudez está assegurada
se a flauta seca:
será de mudo cimento,
não será um búzio

a concha que é o resto
de dia de seu dia:
exato, passará pelo relógio,
como de uma faca o fio


2. O acaso
(O encontro com o acaso)

No deserto, entre os
esqueletos do antigo
vocabulário, Anfion,

no deserto, cinza
e areia como um
lençol, há dez dias

da última erva
que ainda o tentou
acompanhar, Anfion,

no deserto, mais, no
castiço linho do
meio-dia, Anfion,

agora que lavado
de todo canto,
em silêncio, silêncio

desperto e ativo como
uma lâmina, depara
o acaso, Anfion.
*
O acaso ataca e faz soar a flauta.
Ó acaso, raro
animal, força
de cavalo, cabeça
que ninguém viu;
ó acaso, vespa
oculta nas vagas
dobras da alva
distração; inseto
vencendo o silêncio
como um camelo
sobrevive à sede
ó acaso! O acaso
súbito condensou;
em esfinge, na
cachorra de esfinge
que lhe mordia
a mão escassa;
que lhe roía
o osso antigo
logo florescido
da flauta extinta:
áridas do exercício
puro do nada.




*
Tebas se faz
 
Diz a mitologia
(arejadas salas, de
nítidos enigmas
povoadas, mariscos
ou simples nozes
cuja noite guardada
à luz e ao ar livre
persiste, sem se dissolver
diz, do aéreo
parto daquele milagre:

Quando a flauta soou
um tempo se desdobrou
do tempo, como uma caixa
de dentro de outra caixa.



3. Anfion em tebas

(Anfion busca em tebas o deserto perdido)

Entre tebas, entre
a injusta sintaxe
que fundou, Anfion,

entre Tebas, entre
mãos frutíferas, entre
a copada folhagem

de gestos, no verão
que, único, lhe resta
e cujas rodas

quisera fixar
nas, ainda possíveis,
secas planícies

da alma, Anfion,
ante Tebas, como
a um tecido que

buscasse adivinhar
pelo avesso, procura
o deserto, Anfion.
*
Lamento diante de sua obra.

“Esta cidade, Tebas,
não a quisera assim
de tijolos plantada,

que a terra e a flora
procuram reaver
a sua origem menor:

com já distinguir
onde começa a hera, a argila,
ou a terra acaba?

Desejei longamente
liso muro, e branco,
puro sol em si

como qualquer laranja;
leve laje sonhei
largada no espaço.

Onde a cidade
volante, a nuvem
civil sonhada?”

*
Anfion e a flauta.

“Uma flauta: como
dominá-la, cavalo
solto, que é louco?

Como antecipar
a árvore de som
de tal semente?

Daquele grão de vento
recebido no açude
a flauta cana ainda?

Uma flauta: como prever
suas modulações,
cavalo solto e louco?

Como traçar suas ondas
antecipadamente, como faz,
no tempo, o mar?

A flauta, eu a joguei
aos peixes surdo-
mudos do mar.


João Cabral de Melo Neto, “Fábula de Anfíon”, in  Psicologia da Composição,1947.

Comentário “muito impressionista”:
Anfion, o tebano, havia sido presenteado por Hermes com uma flauta (lira, noutra versão da história), passando a dedicar-se completamente ao instrumento. Cabral Neto, tal como Paul Valéry, recria o mito do filho de Zeus, de modo que Anfion, ao tocar a flauta por puro deleite, faz com que as pedras, que seu irmão Zeto arremessava atabalhoadamente para construir as muralhas de Tebas, por efeito mágico da música se disponham umas sobre as outras, ordenadamente, concitando a admiração deste.
A intenção subjacente ao poema é retirar ao mito toda a sua carga sacral, propondo-o como dispositivo textual imanente ao serviço da tese de que a criação estética é um trabalho, requerendo dedicação total.
Neste trabalho, a tradição fornece uma moldura a que o artista confere nova configuração, a qual pressupõe como condição a viagem estética do poeta, percorrendo as três etapas em que o poema se divide:  "o deserto"; "o acaso";  e Anfíon em Tebas.
Na primeira etapa do poema, “a flauta é seca”, feita de silêncio e de esterilidade, levando o poeta a julgar ter encontrado o seu ideal de clareza e de lucidez, sem ceder aos derrames da subjetividade.
Mas logo na segunda etapa o poeta debate-se com a erosão deste ideal: afinal a sintaxe foi comandada pelo acaso, não é justa, é proliferante, mais tendo a ocultar do que a expor a verdade do ser que a convoca.
E daí que na terceira etapa se tenha de fazer o luto pela obra realizada: fruto do acaso, a cidade construída só pode ser um espaço desordenado onde reina a injustiça. A consciência desta traição à essência ontológica da poesia conduz o poeta à deceção, que o leva a sair do poema como quem lava as mãos, deitando fora a sua arte.
 Mas a consciência do poeta obriga-o a continuar a sua trajetória estética, transitando-se por isso para o segundo poema do tríptico que compõe o livro.


sábado, 6 de julho de 2013

Sátira aos que buscam as terras da utopia – “Os Jumblies” - : poema de Edward Lear (1812-1888)


Ilustrador e poeta, contemporâneo de Lewis Carroll, usou o humor como arma de crítica social, desmontando os delírios de grandeza imperial que toldavam a vida inglesa ao tempo do reinado da Rainha Vitória.
A palavra do título ao poema - “The Jumblies” -  é uma criação verbal, um neologismo, que lhe dá uma significação universal, susceptível de atualização para todos os contextos em que aquele delírio se manifeste.
Sendo embora muito conhecido no espaço anglófono, mas pouco divulgado no nosso, justifica-se que repare aqui este olvido.  
Respigo as seguintes passagens para melhor se entender o poema:

“Eles foram para o mar, numa Peneira; eles foram;
Numa Peneira eles foram para o mar:
Apesar do que  todos os seus amigos pudessem dizer,
Numa manhã de Inverno, num dia tempestuoso,
Numa Peneira eles foram para o mar.
(…)
Distantes e poucas, distantes e poucas,
São as terras onde os Jumblies vivem;
As suas cabeças são verdes, as suas mãos são azuis,
E eles foram para o mar numa Peneira.
(…)
E em vinte anos todos regressaram,
Em vinte anos ou mais,(…)
E beberam a sua saúde, e deram-lhe uma festa
De sonhos doces feitos de lindo fermento;
E cada um disse, “Se apenas tivéssemos vivido,
Também teríamos ido ao mar numa Peneira, -
Para as montanhas de Chanlly Bore!”
Distantes e poucas, distantes e poucas,
São as terras onde os Jumblies vivem;
As suas cabeças são verdes, as suas mãos são azuis,
E eles foram para o mar numa Peneira."
(Edward Lear, "The Jumblies", in Nonsense Songs,  Stories, Botany and Alphabets, 1871)

Apresento agora um vídeo com a canção musicada do poema: