segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Idiotia e Felicidade, por Alexandre O'Neill

Como pode ser-se idiota e, ao mesmo tempo, feliz, pergunta-me um leitor? Pois explico já. A idiotia e a felicidade são ideias muito vagas, difíceis de cingir em conceitos de circulação universal, digamos. Mas, pensando melhor, acho que certa idiotia é suscetível de conferir ao idiota seu proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si próprio que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito próxima do que se pode chamar estado de felicidade. Assim sendo, não vejo incompatibilidade entre o ser-se idiota e o ser-se feliz. Bem sei que há várias maneiras de se chegar a idiota. Uma delas foi experimentada comigo. Uma parente minha queria por força reconverter-me ao Catolicismo e, deste modo, passava a vida a dizer-me: «Alexandre, não penses. Se começas a pensar estragas tudo. A crença em Deus, se, em vez de pensares, reaprenderes a rezar, vem por si. É uma graça, sabias? Vá, reza comigo.» E ensinava-me orações que eu, muitas vezes de mãos postas, repetia aplicadamente. Acabei por não me casar com ela.
Não quero dizer, com isto, que não acredite na chamada (creio eu) revelação. Se revelação não existisse, como poderia um poeta do tomo de Paul Claudel entrar um dia em Notre-Dame e sentir-se, naquele preciso momento, convertido irresistivelmente ao Cristo e à irradiação da sua verdade e da sua beleza? E não pode afirmar-se que o grande poeta fosse um idiota.

Agora a minha parente era-o, de certeza, e queria fazer de mim outro idiota. Não por desejar reconverter-me, mas por aconselhar-me, como meio, o de eu não pensar, o de eu principalmente não pensar. Se tivesse casado com ela (que não era filha da minha lavadeira) talvez tivesse sido feliz - não se sabe - idiota e feliz. Assim, fiquei longos anos idiota e infeliz, infeliz por ser idiota e saber que o era e que não podia deixar de o ser. Ora, um idiota que é infeliz por saber que é idiota já pode estar a caminho de deixar de o ser. É uma possibilidade. É a tal luz no fundo do túnel, como se disse tantas vezes a propósito da situação económica deste idiota de país.

Não se espante, por conseguinte, o leitor de que um qualquer idiota possa, ao mesmo tempo, ser feliz. É, até, assaz corrente. Há idiotas que se consideram inteligentíssimos, o que é uma forma muito comum de idiotia, e extraem dessa certeza alguma felicidade, aquela maneira de felicidade que consiste em uma pessoa se julgar muito superior às que a rodeiam.
O leitor gostaria de ser ministro ou secretário de Estado? Pois fique sabendo que há quem goste, embora - será justo dizê-lo - também há quem o seja a contra-gosto, por dever partidário ou patriótico.
Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima como poder, é, quase sempre, um perigo.
Oremos.
Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.”
(Alexandre O'Neill, in Uma Coisa em Forma de Assim, Lisboa Edic, 1980)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Earth Song, Michael Jackson

Litania para este Natal, David Mourão Ferreira



Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo

David Mourão-Ferreira

domingo, 23 de dezembro de 2012

À Espera de Godot: uma alegoria da opressão e da submissão voluntária



 Neste excerto da peça À espera de Godot que escolhi, pretendo destacar a relação de dominação que continua a existir tanto entre os indivíduos como entre as classes e as Nações. Esta relação manifesta-se alegoricamente nas personagens de Pozzo (o dono) e de Lucky (o criado), que funcionam como tipos que enquadram as relações sociais e políticas.
O que aqui se encena continua a lançar-nos o desafio enorme de não pactuar com tudo o que na relação dos homens se encontra pervertido pela opressão (económica, social, cultural) de uns sobre os outros. Enquanto isto acontecer, o Natal para todos é uma miragem.
Quando se rompe este ciclo infernal da prepotência de uns sobre os outros? Como pode a verdadeira “semelhança” entre os homens tomar lugar no mundo? A sátira de Pozzo que no texto se faz, que é a minha, é uma brecha. Que se tem de aprofundar pelos meios da ação esclarecida dos que estão amordaçados pelos seus donos.
 “(….)
VLADIMIR. - Cada um é como é.
ESTRAGON. - E não adianta dar voltas.
VLADIMIR. - O fundo não muda.
ESTRAGON. - Não há nada que fazer. (Oferece a VLADIMIR o que sobra da cenoura) Queres acabar isso?
(Ouve-se muito perto um grito terrível. ESTRAGON solta a cenoura. Ficam rígidos e depois precipitam-se para as laterais. ESTRAGON detém-se a meio caminho, volta para trás, agarra a cenoura, guarda-a no bolso, equilibra-se para VLADIMIR, que o espera, volta a parar, retorna, pega no seu sapato e corre a unir-se a VLADIMIR. Agarrados pela cintura, a cabeça sobre os ombros, de costas em ameaça, esperam.
(Entram POZZO e LUCKY. Aquele dirige este através de uma corda em volta do pescoço, de forma que, ao princípio só se vê LUCKY, seguido da corda, suficientemente comprida, como se pudesse chegar ao centro da cena, antes que POZZO apareça pela lateral. LUCKY leva uma pesada mala, uma cadeira desmontável, um cesto com comida e, no braço, um casaco, POZZO, um látego.)
POZZO. - (Dentro.) Mais rápido!
(Estalando o látego. Entra POZZO. Cruzam a cena. LUCKY passa ante VLADIMIR e ESTRAGON e sai. POZZO, ao ver VLADIMIR e ESTRAGON, detém-se. A corda estende-se. POZZO tira-a violentamente.)
 Atrás!
(Ruído de queda. LUCKY caíu com toda a sua carga. VLADIMIR e ESTRAGON olham-no, vacilando entre socorrê-lo e o temor de meter-se no que não lhes diz respeito. VLADIMIR avança um passo para LUCKY, ESTRAGON agarra-o pela manga.)
 VLADIMIR. - Deixa-me!
ESTRAGON. - Tem calma.
POZZO. - Cuidado! É mau. (ESTRAGON e VLADIMIR olham-no) Com os estranhos.
ESTRAGON. - (Baixo.) É ele?
VLADIMIR. - Quem ?
ESTRAGON. - Quem vai ser?
VLADIMIR. - Godot?
ESTRAGON. - Claro.
POZZO. - Apresento-me: POZZO.
VLADIMIR. - Que vai!
ESTRAGON. - Disseste Godot.
VLADIMIR. - O que vai!
ESTRAGON. - (A POZZO.) Não é você o senhor Godot, senhor?
POZZO. - (Com voz terrível.) Sou POZZO! (Silêncio.) Não lhes diz nada este nome? (Silêncio.) Pergunto-vos se não lhes diz nada este nome?
(VLADIMIR e ESTRAGON consultam-se  com o olhar.)
ESTRAGON. - (Como quem busca) Bozzo..., Bozzo.
VLADIMIR. - (Igual) POZZO.
POZZO. - Pppozzo!
ESTRAGON. - Ah!, POZZO, vá, vá... POZZO...
VLADIMIR. - É POZZO ou Bozzo?
ESTRAGON. - POZZO...; não, não me diz nada.
ESTRAGON. - (Conciliador.) Conheci uma família Gozzo. A mãe bordava.
(POZZO avança, ameaçador.)
ESTRAGON. - (Vivamente.) Nós não somos daqui, senhor.
POZZO. - (Detendo-se.) Entretanto, são seres humanos. (Coloca os óculos.) Ao menos pelo que vejo. (Tira-se os óculos.) De igual espécie que a minha. (Solta uma enorme gargalhada.) Da mesma espécie que POZZO! De origem divina!
VLADIMIR. - Ou seja.
POZZO. - (Cortante.) Quem é Godot?
ESTRAGON . - Godot?
POZZO. - Vocês tomaram-me por Godot.
VLADIMIR. - Oh, não senhor! Nem por um momento, senhor.
POZZO. - Quem é?
VLADIMIR. - Pois é um ..., é um conhecido.
ESTRAGON. - Mas, vamos, não o conhecemos quase.
VLADIMIR. - Evidentemente..., não o conhecemos muito bem...; não obstante...
ESTRAGON - Eu, certamente, não o reconheceria.
POZZO. - Vocês confundiram-me com ele.
ESTRAGON. - Bem..., a escuridão..., o cansaço..., a debilidade.... a espera...; reconheço... que por um momento... acreditei...
VLADIMIR. - Não leve em conta, senhor, não faça caso!
POZZO. - A espera? Então, esperavam-no?
VLADIMIR. - Quer dizer...
POZZO. - Aqui? Em minhas terras?
VLADIMIR. - Não pensávamos fazer nada de mau.
ESTRAGON. - Tínhamos boas intenções.
POZZO. - O caminho é de todos.
VLADIMIR. - É o que nós dizíamos.
POZZO. - É uma vergonha, mas é assim.
ESTRAGON. - Não HÁ NADA A FAZER.    
POZZO. - (Com um gesto amplo.) Não falemos mais disso. (Tira-o da corda.) De pé! (Pausa.) Cada vez que cai, fica dormindo. (Tira-o da corda.) De pé, carniça! (Ruído de LUCKY, que se levanta e pega sua carga. POZZO tira-o da corda.) Atrás! (LUCKY entra recuando.) Quieto! (LUCKY pára) Volte! (LUCKY volta-se. A VLADIMIR e ESTRAGON, amavelmente.) Meus amigos: sinto-me feliz por tê-los encontrado. (Ante a sua expressão de incredulidade.) Pois claro, verdadeiramente feliz! (Tira da corda.) Mais perto! (LUCKY avança.) Quieto! (LUCKY detém-se. A VLADIMIR e ESTRAGON.) Já se sabe, o caminho é longo quando se anda sozinho durante... (Consulta o seu relógio), durante ... (Calcula) seis horas, sim, justamente seis horas seguidas sem encontrar uma alma. (Ao LUCKY) Casaco! (LUCKY põe a mala no chão, avança, entrega o casaco, retrocede, volta a pegar na mala.) Toma! (POZZO estende-lhe o látego. LUCKY avança e, ao não ter mais mãos, inclina-se e agarra o látego entre os dentes e depois retrocede. POZZO começa a colocar o casaco, mas detém-se.) Casaco! (LUCKY deixa tudo no chão, avança, ajuda POZZO a colocar o casaco, retrocede e volta a pegar em tudo.) O ar é fresco. (Acaba de abotoar o casaco, inclina-se, olha-se, ergue-se.) Látego! (LUCKY avança, inclina-se, POZZO arranca-lhe o látego da boca, LUCKY retrocede.) Já vêem, amigos, não posso permanecer muito tempo sem a companhia de meus semelhantes (olha os seus dois semelhantes), embora só muito imperfeitamente me assemelhem. (Ao LUCKY.) Cadeira! (LUCKY deixa a mala e a cesta, avança, abre a cadeira desmontável, coloca-a, retrocede e volta a pegar na mala e no cesto. POZZO olha a cadeira.) Mais perto! (LUCKY deposita a mala e o cesto. Avança, move a cadeira, retrocede, volta a pegar a mala e o cesto. POZZO senta-se, apoia o extremo de seu látego no peito do LUCKY e empurra.) Atrás! (LUCKY retrocede) Mais atrás! (LUCKY volta a retroceder.) Quieto! (LUCKY detém-se, a VLADIMIR e ESTRAGON.) Por isso, com a sua permissão, ficarei um momento junto de vocês, antes de me aventurar mais adiante. (A LUCKY) Cesto! (LUCKY avança, entrega o cesto, retrocede) O ar abre o apetite. (Abre o cesto, tira um pedaço de frango, um pedaço de pão e uma garrafa de vinho. A LUCKY) Cesto! (LUCKY avança, pega o cesto, retrocede e fica imóvel.) Mais longe! (LUCKY retrocede). Aí! (LUCKY detém-se.) Empresta! (Bebe um gole na mesma garrafa) À nossa saúde! (Deixa a garrafa e fica a comer)
(Silêncio. ESTRAGON e VLADIMIR, encorajando-se pouco a pouco, giram ao redor de LUCKY e olham-no por todo lado. POZZO remói com voracidade a parte de frango e atira os ossos depois de chupá-los. LUCKY dobra-se lentamente até que a mala toca o chão, incorpora-se bruscamente e começa outra vez a dobrar-se seguindo o ritmo de quem dorme de pé).”

sábado, 22 de dezembro de 2012

Elêusis, poema de Hegel dedicado ao amigo Hölderlin (1796)



 Oh! If the doors of your sanctuary should
crumble by themselves
O Ceres, you who reigned in Eleusis!
Drunk with enthusiasm, I would
shiver with your nearness,
I would understand your revelations,
I would interpret the lofty meaning of the
images, I would hear
the hymns at the gods’ banquets,
the lofty maxims of their counsel.
Even your hallways have ceased to echo,
Goddess!
The circle of the gods has fled back to Olympus
from the consecrated altars;
fled from the tomb of profaned humanity,
the innocent genius who enchanted them here! —
The wisdom of your priests is silent, not one
note of the sacred
initiations preserved for us—and in vain strive
the scholars, their curiosity greater than their love
of wisdom (the seekers possess this love and
they disdain you)—to master it they dig for words,
in which your lofty meaning might be engraved!
In vain! Only dust and ashes do they seize,
where your life returns no more for them.
And yet, even rotting and lifeless they
congratulate themselves,
the eternally dead!—easily satisfied—in vain
—no sign remains of your celebration,
 no trace of an image.
For the son of the initiation the lofty
doctrine was too full,
the profundity of the ineffable sentiment was too sacred,
for him to value the desiccated signs.
Now thought does not raise up the spirit,
sunken beyond time and space to purify infinity,
it forgets itself, and now once again its consciousness
is aroused. He who should want
to speak about it with others,
would have to speak the language of angels,
would have to experience the poverty of words.
He is horrified of having thought so little of
the sacred, of having made so little of it,
that speech seems to him a sin, and though
still alive, he closes his mouth.
That which the initiate prohibits himself,
 A sage law also prohibits the poorest souls:
 to make known what he had seen, heard,
felt during the sacred night:
so that even the best part of his prayers
was not disturbed by the clamor of their disorder,
and the empty chattering did not dispose
him toward the sacred,
and this was not dragged in the mud, but
was entrusted to memory—so that it did
not become a plaything or the ware of some sophist,
who would have sold it like an obolus,
or the mantle of an eloquent hypocrite or
even the rod of a joyful youth, or become so
empty at the end, that only in the echo
of foreign tongues would it find its roots.
Your sons, Oh Goddess, miserly with your
honor, did not carry it through the streets and markets,
but they cultivated it in the breast’s inner chambers.
And so you did not live on their lips.
Their life honored you. And you live still in their acts.
Even tonight, sacred divinity, I heard you.
Often the life of your children reveals you,
and I introduce you as the soul of their acts!
You are the lofty meaning, the true faith,
which, divine when all else crumbles, does
not falter.

Georg Hegel, Eleusis, in Giorgio Agamben, Language
and Death: The Place of Negativity, translated by
Karen E. Pinkus with Michael Hardt (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006), 6-9.