O teatro é talvez a primeira forma estética do homem apreender o sentido ontológico do real, em função do qual pode interpretar o seu lugar no mundo.
Com os gregos clássicos, a arte teatral serviu à cidade de espelho através do qual ela podia pensar-se enquanto humanidade de um viver comum, de cooperação e de conflito, sob a égide do Destino e do olhar, hostil ou benevolente, dos deuses.
Com o cristianismo, durante a Idade Média, a representação teatral tornou-se, no rito, a linguagem da celebração dos mistérios de Deus, ou foi usada com o intuito de censurar os pecados e contribuir para a conversão, no teatro religioso ao serviço do projeto da Igreja.
Mas a par deste teatro religioso, foi surgindo um teatro profano, no princípio ligado à corte mas que rapidamente se difundiu pela sociedade, nas feiras e no espaço das cidades. Esta forma, que no princípio surgiu como diversão dos cortesãos, foi-se tornando pouco a pouco mais independente da corte, entrando por vezes em confronto com os poderes instituídos.
Criou-se desde aqui uma relação ora de mais proximidade e de serviço ora de mais distância e oposição entre o teatro e o poder, consoante as conjunturas e os autores em presença. Mas com a modernidade afirmou-se um teatro de raiz popular, à margem do poder.
Em Portugal temos um documento, datado de 1193, de uma doação a dois jograis no reinado de D. Sancho I, que diz o seguinte: “” Nós, mimos acima referidos, devemos ao Senhor nosso Rei um arremedilho para efeito de compensação“. “Arremedilho” é a imitação burlesca em que se ridiculariza alguém macaqueando o seu semblante, e, segundo Luciana Stegano Pichio, é um género dramático típico de Portugal, que pode ter-se inspirado nas representações satíricas dos goliardos. Esta forma artística foi penetrando para além do espaço da corte, nas feiras e espaços urbanos, popularizando-se e assumindo como instrumento de flagelação das autoridades e de afirmação da dignidade dos oprimidos.
Este teatro satírico, que nasceu com as nossas origens, continua a ser uma necessidade ingente para estes tempos de crise, que esmaga quase todos para benefício de mui poucos.
Viva o teatro neste dia da sua celebração mundial!
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quarta-feira, 27 de março de 2013
sábado, 30 de junho de 2012
Fadwa Suleiman: uma atriz desafiando o leão sírio
Tem-se destacado nas manifestações pacíficas contra o regime opressor sírio. Não ficou prisioneira do prestígio de actriz de teatro, cinema e televisão nem da sua pertença religiosa aos alauitas, que ocupam o poder. Fadwa Suleiman de todo isso abdicou para empunhar a bandeira da revolta contra a tirania, correndo todos os riscos.
A sua trajectória no teatro continha já a semente desta atitude política.
Em 2005, foi a atriz escolhida para representar o papel de uma prostituta num teatro de Damasco, na peça "Metamorfose", um original do dramaturgo sírio Saadallah Wannous, cuja obra celebrada está traduzida em alemão. Nesta peça, uma mulher da alta sociedade divorcia-se e torna-se prostituta, enquanto o seu marido, D. Juan abandonado, cai no engano de um mufti e torna-se sufi.
A dissidência protagonizada na peça tornou-se carne nesta mulher, que, com alguns dizem, é a Pasionária da revolução síria.
Tornou-se o símbolo vivo de todas mulheres árabes que lutam por um mundo diferente.
A sua trajectória no teatro continha já a semente desta atitude política.
Em 2005, foi a atriz escolhida para representar o papel de uma prostituta num teatro de Damasco, na peça "Metamorfose", um original do dramaturgo sírio Saadallah Wannous, cuja obra celebrada está traduzida em alemão. Nesta peça, uma mulher da alta sociedade divorcia-se e torna-se prostituta, enquanto o seu marido, D. Juan abandonado, cai no engano de um mufti e torna-se sufi.
A dissidência protagonizada na peça tornou-se carne nesta mulher, que, com alguns dizem, é a Pasionária da revolução síria.
Tornou-se o símbolo vivo de todas mulheres árabes que lutam por um mundo diferente.
segunda-feira, 18 de junho de 2012
Morte e Vida Severina: promessa por vir
O excerto de que vou esboçar um comentário breve toma por objecto uma criança recém-nascida, tema presente em Morte e Vida Severina - Auto de Natal Pernanbucano, um poema dramático em redondilha maior (septissílabo) de João Cabral de Melo Neto. Pretende mostrar que, mesmo nos tempos minguados da vida dos homens, é sempre possível sonhar que a vida nascente é uma abertura para um mundo diferente.
Trata-se de uma peça que foca a tragédia da emigração de um sertanejo brasileiro em busca de melhor vida noutras paragens do litoral, escrita em 1955, como encomenda de um grupo teatral de S. Paulo. Afinidades com o que se vive hoje no mundo não faltam.
Para além da importância política do tema da peça, a sua beleza manifesta-se no modo como a composição se organiza. Neste sentido, é consequente com a conceção que João Cabral de Melo Neto tem da criação poética: deve partir dos temas da vida comum dos homens, ser escrita numa linguagem comum, para ser veículo de comunicação, mas salvaguardando o corpo do poema das contaminações da ideologia, o que exige inspiração e tecnicidade na escolha da palavra e na sua concatenação orgânica.
As duas primeiras estrofes do poema, retiradas da 17ª cena, são as seguintes:
— De sua formosura/já venho dizer:
é um menino magro,/de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,/de obra de ventre de mulher.
— De sua formosura/deixai-me que diga:
é uma criança pálida,/é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,/marca de humana oficina.
Cada estrofe é constituída por 6 versos, e imediatamente se depreende que a figura de composição que organiza o poema é o paralelismo: o primeiro verso da primeira estrofe é repetido no mesmo lugar na segunda estrofe, praticamente com os mesmos lexemas, e semelhante repetição ocorre nos outros versos, mas com lexemas diferentes mas da mesma área semântica.
Esta opção pela estrutura paralelística, com pergaminhos na nossa história literária, serve de amostragem com valor para o universo da peça no seu conjunto. Tem o desiderato esta figura de produzir não uma redundância desnecessária mas um ritmo e uma intensificação de sentido, uma ênfase, que aumenta a pregnância do efeito estético.
A rima toante recai sobre a vogal tónica do segundo e do sexto verso, na primeira estrofe, e na quarta e sexta da estrofe seguinte.
É de notar também a oposição no plano do discurso e do sentido que se estabelece, nas duas estrofes, entre os versos três e quatro e cinco e seis. Esta oposição é igualmente representativa deste excerto, e de toda a peça, modulando a oposição fundamental vida/morte. Esta contradição tem assim um alcance metafísico, na medida em ela expressa a polaridade em que se joga o absurdo da vida, cujo pathos constitui o próprio sentido da vida.
As estrofes finais desta cena são a culminação de toda a beleza que há num recém-nascido. Vários são os lexemas a que se recorre para o efeito: árvores autóctones, ondas do mar, o dia, o caderno em que se escreve, os oásis, o vento. São imagens recorrentes que dão a ver a vida nova do recém-nascido, que dissolve no seu ato tudo o que se lhe opõe:“é belo porque corrompe/com sangue novo a anemia./Infecciona a miséria/com vida nova e sadia./-Com oásis, o deserto,/com ventos, a calmaria”.
Esta reiteração de lexemas diferentes, mas do mesmo campo semântico de afirmação da vida, tem assim um alcance cósmico e soteriológico, sendo a criança um “messias” no qual a poeta sonha a possibilidade de um mundo diferente, onde o nome Severino, com toda a carga de sentido que o habita, se eclipse.
A última cena abre a possibilidade da vida ser diferente, mas para isso é preciso sair dos limites da poesia e assumir uma posição política que a isso conduza. Isso nos mostra a longa estrofe final, que ocupa toda esta cena, e de que respigo esta passagem:
“eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela
esta que vê, severina”.
Dedico este breve comentário à minha filha e a todas as crianças do mundo.
Vasco Ferreira Louro Tomás
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