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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A razão como instância da resolução do conflito: um exemplo retirado da Ilíada

Este poema homérico, para além da sua qualidade literária, possui um alcance ontológico mais vasto: expõe os sentimentos que comandam as relações entre os homens, avalia a conduta moral dos indivíduos em presença, sempre divididos entre a virtude e o vício, e fornece a norma para a existência da vida em comum.
A força é o eixo central que estrutura a ação do poema (por exemplo, é esta a interpretação de Simone Weil), mas há sempre o seu contraponto: o conselho racional (da deusa Atena, de Nestor, de Pátroclo, consoante as situações) que persuade a substituir a pulsão fratricida da vingança pela negociação através da argumentação.
Por isso, o poema foi e continua a ser hoje um espelho do que somos: seres movidos pela paixão assassina como forma de reposição da justiça, mas capazes de ouvir a voz da razão, obedecer-lhe, e usá-la como meio de resolução dos conflitos. E continua a ser, como sempre foi ao longo da história do Ocidente, um recurso pedagógico útil para o processo de humanização e desenvolvimento moral de cada cidadão e enriquecedor à ordem democrática.
O exemplo que vou apresentar da Ilíada surge logo no Canto I, e o seu contexto é o seguinte: Agamémnon, que era o chefe supremo da expedição a Tróia, tinha tomado como cativa  Criseida, para a fazer sua concubina, o que tinha desencadeado a fúria de Apolo (que ouvira a súplica do pai daquela, o sacerdote Crises), que dardejava  com flechas o exército grego, dizimando-o.
Agamémnon não estava disposto a ceder, até que Aquiles, conhecendo a causa da desgraça - que o áugure lhe tinha transmitido - que se abateu sobre o exército dos aqueus (gregos), procura demovê-lo de persistir em tomar Criseida como cativa, que se dispôs a aceitar, com a condição de tomar para si a cativa de guerra que coubera em sortes a Aquiles, Briseida, tróiana de rara beleza.
 A afronta a Aquiles fez crescer-lhe no peito a fúria assassina, hesitando entre o golpe fatal ou a sua evitação. E é então que lhe surge Atena, a deusa da razão, aconselhando-o a usar a estratégia da argumentação para persuadi-lo a arrepiar caminho. Aquiles ouve o conselho da deusa, obedece-lhe porque o homem deve acatar a lei divina, que não quer a violência mas a concórdia.


Eis o excerto escolhido do Canto I da Ilíada
(…)
“E a de olhos glaucos diva Atena lhe profere:
“Escuta-me [Aquiles], se aceitas, vim cessar tua fúria.
Do céu Hera expediu-me, a diva de alvos braços,
Ela condói-se de ambos[Agamémnon e Aquiles], muito estima os dois:
Do gládio tira a mão, do peito a tua raiva.
Com falas, se quiseres, tu podes xingá-lo,
Pois do que vai haver logo te dou aval:
Três vezes mais tudo receberás de prendas,
Em paga desta ofensa, e em nós repõe tua crença”.
E ao responder lhe diz o herói de pés velozes[Aquiles]:
“Importa entre os divinos, deusa, algo jurar,
Que mesmo doendo na alma, será a solução

Ouvirmos os divinos é sermos ouvidos”.
Disse, e lhe cai da cinta a argêntea mão pesada,
E o gládio grande à cinta pôs, nem respondeu
À voz de Atena, que, com demais deuses, foi-se
Aos cimos Olimpiais do egífero Cronida.
Com gritos bravos o Pelida [Aquiles, filho de Peleu] uma vez mais
Fala ao Atrida [Agamémnon] sem seu ódio sofrear:
“Borra de vinho, olho de cão, e ao peito um veado!
À guerra nunca a te bateres com o povo,
E às armadilhas ir com Aqueus espertos
Nunca tu ousaste, que isto é morte para ti.
Melhor te quadra na ampla esquadra dos Aqueus
Os dons surripiar de quem de ti discorde.
Ó rei-papão de povos, a ninguém governas!
E a prova do que eu digo é que tu segues vivo!
Porém põe na memória o que te falo agora:
Por este cetro, não crescido mais de cepa
Ou folha, desque aos montes seu caule deixou,
E onde não cresce a flor, pois faca ênea o limpa
De folha e escória, e que os Aqueus agora ainda
Erguem nas santas mãos – porque há, por fim, as leis
Que a Zeus honoram – santo será meu jurar:
Fará falta Aquileu, um dia, aos Aqueus todos,
E ainda sofras, nada poderás fazer-lhes
De útil, se sob Heitor mata-varões inúmeros
Caiam morrendo, e em tua alma o remoerás.
Pois que ofendeste entre os Aqueus ao sumo herói”.
Tal proferindo, à terra o herói jogou seu cetro
Em furos cravejados de ouro, e se assentou
Diante do Atrida, que bufava, e aos dois Nestor
Dulcíloquo se eleva, o Pílio orador sumo
Dimana-lhe da língua a voz mais que o mel doce.
Duas gerações de homens falantes precederam-no,
E que antes dele são nascidos e nutridos
Na diva Pilos, e entre os outros reinou ele,
E bem intencionado disse e lhes falou:
“Grã dor visita o solo Acaio, ó numes!”

(Homero, Ilíada, Canto I, trad. de Antônio Medina Rodrigues, ed. online)



segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Imprecação contra a guerra civil “larvar”, pela mão de Tucídides



Imagem em vaso de cerâmica grega (www.flickr.com)

Há um texto de Tucídides que nos fala de uma guerra civil que ocorreu numa cidade-Estado grega durante a Guerra do Peloponeso (431-404), talvez o primeiro relato bélico verídico da história do Ocidente. A pungência das palavras de Tucídides deve calar fundo em nós, pois qualquer guerra não é a continuação da política por outros meios, ela é a própria destruição da política como ordem de regulação dos conflitos entre as pessoas, os grupos e as nações. É assim pertinente trazer este texto de Tucídides à colação.
A ilha do Corfú (Córcira), situada no mar jónio (na zona ocidental da Grécia), ocupava uma posição estratégica nas rotas comerciais com o Ocidente (Magna Grécia). Aliada de Atenas, enfrentou o dilema interno de manter-se fiel a esta aliança ou tomar o partido de Esparta. Este dilema foi protagonizado pelas duas fações políticas – aristocratas e democratas – que entraram em rota de colisão que conduziu à guerra civil.
O relato de Tucídides dá conta das causas que desencadearam a guerra, dos interesses económicos e políticos envolvidos e da incapacidade dos beligerantes ouvirem a voz da razão.
Ora, hoje, a ausência de guerra fratricida em que a Europa tem vivido nas últimas décadas não cria imunidades sempiternas ao devir da história. Por isso, o tema da guerra civil, de todas as guerras civis do passado e de hoje, mantém-se em frente das nossas consciências como um alerta e como um desafio que nos deve mover a ser “obreiros da paz”.
Como? Cada um tem que encontrar as modalidades da sua ação transformativa, de que brota a paz. Mas o exercício de um pensamento esclarecido sobre o paradoxo com que as sociedades modernas se debatem, divididas entre a amplidão das exigências de justiça, como condição para a fruição de uma vida digna, e a persistência de entraves de vária ordem a esse desiderato afigura-se como um caminho necessário para o serviço da paz.
Não havendo respostas acabadas já pré-fabricadas à altura das necessidades do nosso tempo, contudo há que assumir o legado de pensamento que foi eficaz no passado e que, no presente, reinterpretado, pode de novo ser operatório. Para este fim, o método mais seguro é o exercício dos poderes de uma razão dialógica, pois só ela permite alcançar critérios de consenso para a solução dos problemas. Mas a condição deste exercício da razão enraíza-se necessariamente numa ética de verdade e de reconhecimento da alteridade como valor, pelo menos equivalente, ao da singularidade do próprio.
O debate esclarecido, em que cada um é capaz de ouvir as razões do outro e colocar-se no seu lugar, não esquecendo de incluir nesse espaço todos os que se encontram numa situação cultural e social deprimida e que, por isso, não têm oportunidade de fazer ouvir as suas vozes, é o caminho certo vencer as aporias e encontrar o rumo certo a trilhar.
Estre trabalho da razão deve ser feito ao mesmo tempo que deve prosseguir o combate efetivo: individual e coletivamente, sob as modalidades supletivas da solidariedade social; ou sob as formas políticas adequadas à situação, desde a reivindicação salarial, a contestação esclarecida e firme (greves, manifestações), a resistência individual às decisões injustas da autoridade, o apelo às instâncias do direito internacional.
Mesmo assim, todo o desfecho está sempre em suspenso e, por isso, a eventualidades da guerra paira sempre como uma nuvem ominosa sobre as nossas cabeças. Usemos todos os recursos, sobretudo os da razão e do reconhecimento do valor do outro como absoluto, para prevenir os dias da ira de todas as guerras.
É tempo de dar a ler o texto de Tucídides:
“Tais foram os excessos de crueldade a que a revolução levou, e eles pareceram ainda mais brutais porque foram os primeiros a ocorrer; mais tarde, praticamente todo o mundo helénico ficou convulsionado, pois nas várias cidades os chefes das respetivas fações democráticas enfrentavam os oligarcas, já que os democratas queriam chamar os atenienses e os oligarcas os lacedemônios.
Com efeito, em tempo de paz não teriam pretexto nem ousadia para pedir a intervenção, mas agora, que as duas alianças estavam em guerra, cada fação, nas várias cidades, se desejava uma revolução, achava fácil recorrer a aliados, para de um só golpe fazer mal aos adversários e fortalecer sua própria causa.
Dessa forma, as revoluções trouxeram para as cidades numerosas e terríveis calamidades, como tem acontecido e continuará a acontecer enquanto a natureza humana for a mesma; elas, porém, podem ser mais ou menos violentas e diferentes em suas manifestações, de acordo com as várias circunstâncias presentes em cada caso. Na paz e prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores sentimentos, porque não são forçados a enfrentar dificuldades extremas; a guerra, ao contrário, que priva os homens da satisfação até das suas necessidades quotidianas, é uma mestra violenta e desperta na maioria das pessoas paixões em consonância com as circunstâncias do momento.
Assim, as cidades começam a ser abaladas pelas revoluções, e as que são atingidas por estas mais tarde, conhecendo os acontecimentos anteriores, chegam a extravagâncias ainda maiores em iniciativas de uma engenhosidade rara e em represálias nunca antes imaginadas.
A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo os caprichos dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente torna-se cobardia dissimulada; a moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível merece sempre confiança e o seu oposto torna-se suspeito. O conspirador bem-sucedido é inteligente, e ainda mais aquele que o descobre, mas quem não aprova esses procedimentos é tido como traidor do partido e um cobarde diante dos adversários.
Em suma, ser o primeiro nessa corrida para o mal e compelir a entrar nela quem não queria é motivo de elogios. Na realidade, os laços de parentesco ficam mais fracos do que os de partido, no qual os homens se dispõem mais decididamente a tudo ousar sem perda de tempo, pois tais associações não se constituem para o bem público respeitando as leis existentes, mas para violarem a ordem estabelecida ao sabor da ambição. Os compromissos tiram a sua validade menos da sua força de lei divina do que da ilegalidade perpetrada em comum.
Palavras sensatas ditas por adversários são recebidas, se estes prevalecem, com desconfiança vigilante ao invés de generosidade. Vingar-se de uma ofensa é mais apreciado do que não haver sido ofendido. Os juramentos de reconciliação só têm valor no momento em que são feitos, pois cada lado só se compromete para fazer face a uma emergência, não tendo a mínima força, e aquele que, em qualquer ocasião, vendo um adversário desprevenido, é o primeiro a atrever-se e acha a sua vingança mais agradável, por causa do compromisso rompido, do que se atacasse abertamente, levando em conta não somente a segurança de tal procedimento, mas também a circunstância de, por vencer mediante falsidade, estar fazendo jus a elogios pela sua astúcia.
De um modo geral, os homens passam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos do que tolos honestos, envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro.
A causa de todos esses males era a ânsia de chegar ao poder por cupidez e pela ambição, pois destas nasce o radicalismo dos que se entregam ao faciosismo partidário. Com efeito, os líderes partidários emergentes nas várias cidades, usando em ambas as fações palavras especiosas (uns falavam em igualdade política para as massas, outros em aristocracia moderada), procuravam dar a impressão de servir aos interesses da cidade, mas na realidade serviam-se dela; valendo-se de todos os meios para impor-se uns aos outros, todos ousavam praticar os atos mais terríveis, e executavam vinganças ainda piores, não nos limites da justiça e do interesse público, mas pautando a sua conduta, em ambos os partidos, pelos caprichos do momento; sempre estavam prontos, seja ditando sentenças injustas de condenação, seja subindo ao poder pela violência, a agir em função das suas rivalidades imediatas.
Consequentemente, ninguém tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom termo um plano odioso, sob o manto de palavras enganosas, eram considerados os melhores, e os cidadãos que não pertenciam a um dos dois partidos eram eliminados por ambos, por não fazerem causa comum com eles ou simplesmente pelo despeito de vê-los sobreviver.”
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso, Livro III, capítulo 82


terça-feira, 1 de janeiro de 2013

“Medidas contra a violência”, um conto filosófico de Brecht


Bertolt  Brecht é o criador de um misterioso personagem que figura em vários contos escritos ao longo de trinta anos: o senhor Keuner. São textos curtos (são raros os que ultrapassam uma página) que nos apresentam esse sábio pouco convencional, que usa a ironia filosófica como estratégia de corrosão das ideias dominantes (Propriedade, Indivíduo, Nação, Deus, Bondade, Honestidade, violência). Fazendo-as colidir com a realidade, desperta o sono dogmático do espectador, obrigando-o a abrir-se a um questionamento que o prepara para uma atitude prática.
Repare-se, no conto que se transcreve, como a prática desmente a teoria. A contradição despertará no espetador da peça uma atitude crítica, que o disporá a uma tomada de posição consequente.  Eis o conto:


 Quando o senhor Keuner, o Pensador, se pronunciou contra a violência numa grande sala cheia de gente, reparou que as pessoas começaram logo a recuar e a sair. Voltou-se e viu de pé, atrás de si (…) a Violência.

“O que dizias tu?”, perguntou-lhe a Violência.

“Pronunciava-me a favor da violência” , respondeu o senhor Keuner.

Quando o senhor Keuner saiu, os seus alunos quiseram saber o que era feito da sua coragem. O senhor Keuner respondeu:

“A coragem que tenho não chega para me deixar açoitar. Isto porque preciso de mais longa vida do que a violência.”

E contou a seguinte história:

“Um dia, nos tempos da ilegalidade, em casa do senhor Egge, que tinha aprendido a dizer “não”, apareceu um agente com um documento assinado pelos que reinavam na cidade, dizendo que todo o domicílio onde o portador pusesse o pé passaria a ser propriedade sua; de igual forma, também passaria a pertencer-lhe a comida que reclamasse, e todo o homem que se cruzasse com ele passaria a estar ao seu serviço.
O agente instalou-se numa cadeira, pediu comida, lavou-se, deitou-se e, com o rosto voltado para a parede perguntou, pouco antes de adormecer: “Estás disposto a servir-me?

O senhor Egge tapou-o com uma manta, afugentou as moscas, ficou de vigília enquanto ele dormia e continuou a obedecer-lhe durante sete anos. Não obstante tudo o que lhe fez, houve uma coisa de que se absteve sempre: pronunciar uma palavra, fosse ela qual fosse. O agente, que engordara de tanto comer, dormir e mandar, passados sete amos morreu. O senhor Egge embrulhou-o, então, na manta já gasta, arrastou-o para fora de casa, limpou a cama, caiou as paredes, respirou fundo e respondeu:Não!”

Bertolt Brecht, Histórias do Senhor Keuner, Hiena Editora, pp.17-8