Neste conto, inserto no livro O Exílio e o Reino (1957), o personagem principal é o engenheiro d’Arras, que é enviado a Iguape (município do Estado de São Paulo) com a missão de aí dirigir a construção de uma barragem que evitasse a inundação periódica dos bairros mais baixos.
À medida que a viagem decorre, o engenheiro vai descobrindo
aquele mundo, com uma floresta exuberante, que um rio atravessa, e vai
conhecendo alguns nativos com que se cruza: três mulatos, de torsos nus e com
um chapéu de palha em cone sobre a cabeça, que se ocupam da faina de atravessar
os passageiros, com os seus meios de trabalho primitivos: um jangada que se
desloca com a utilização de varas de fundear.
A partir daí está dado o tom contrastante entre os dois
estratos sociais, que atinge o ápice com a chegada a Iguape: as autoridades e
os subordinados.
Do lado da elite local, temos os notáveis da cidade
(administrador, magistrado e chefe da polícia): “no clube – uma espécie de
botequim num primeiro andar, mobilado de mesas de zinco e balcão de bambu – os
notáveis eram em número elevado” (p. 188).
Do lado da plebe, temos os pretos e os mulatos, a viver em
sórdidas casas, que exalam um cheiro a fumo e a miséria: “diante das casas postavam-se
negros silenciosos a observar os recém-vindos. Alguns casais de mão dada e, na
borda da escarpa, defronte de adultos, arregalavam os olhos vários moleques de
ventre dilatado e coxas franzinas.” (pp. 190-1).
Este estratificação social, que ainda se mantém hoje com
poucas alterações, é porventura ainda uma sobrevivência do colonialismo
português e da incúria ou incapacidade política brasileira em ter conseguido
anulá-la ou esbatê-la convenientemente (não obstante os esforços de João
Goulart, que morre em 1954, e a orientação desenvolvimentista presidida pelo liberal Juscelino Kubitschek, a partir de 1955).
A moral dos notáveis é clara: olham do alto os que estão na
base da pirâmide, não toleram o desvio ao cumprimento da lei quando os
subordinados a violam, não respeitando algum dos seus iguais e nada fazem para
libertar da miséria, material ou espiritual, os que nela jazem.
A dos súbditos alimenta-se do silêncio, do medo e da
submissão, sendo a deferência com que tratam os “senhores” um sinal desse
opróbrio. Como desforra, resta-lhes a força da vida, que se manifesta por
ocasião das festas.
É aqui que surge o ponto que pretendo assinalar: vai
acontecer uma festa religiosa que consta de uma procissão em que um dos
penitentes leva uma pedra muito pesada à cabeça durante o percurso daquela,
como forma de pagar alguma graça recebida, não a podendo deixar cair no chão.
Trata-se de um ritual baseado na lenda da pedra que cresce, que remonta aos
fins do século XVII, e que a religiosidade elevou à dignidade de milagre.
Não conheço de que modo a Igreja tem lidado com este ritual,
mas é de bom conselho o que dizia, há muitos anos, D. António Ferreira Gomes,
sobre as promessas à Senhora de Fátima: é fazer da religião um negócio, em que
se paga a Deus um favor por ele concedido, o que é um desvirtuamento da
natureza daquela.
Ora, o cumpridor da promessa nessa ocasião era um mulato
cozinheiro, com quem o engenheiro d’Arras já havia estabelecido contacto.
Enquanto a turba ondulava e ululava pelas ruas, a elite dos notáveis, com o
engenheiro, apreciava o préstito, enquanto um avião roncava nos céus, para que
os céus mais se estreitassem à terra.
De súbito, o
engenheiro abandona o seu palanque e imiscui-se no meio da multidão, de modo que,
quando a pedra tomba da cabeça do penitente e o fere, ele o substitui nessa
ingrata missão. Com todo o esforço, suando e a cair de exaustão, num momento
desvia-se da rota normal da procissão: toma o caminho da choça do cozinheiro e
aí, no meio, deposita a pedra sobre uma brasas ainda ativas.
E aí fica a pedra,
finalmente envolta em terra e em cinza, até que chegam os ocupantes da choça,
com o olhar inquisitivo ante o mutismo do engenheiro. Cresce então sobre si uma
vida que se afirma pletoricamente, e inunda-o de uma indizível alegria e
felicidade.
E surge o convite dos ocupantes da choça: “senta-te connosco”.
Admirável gesto de reconhecimento, prenúncio de um porvir diferente.
É um conto admirável, pois nos retrata um personagem – d’Arras
– que, pelas atitudes em face dos humilhados, é uma encarnação da figura do
justo bíblico, ainda que sem fé explícita em Deus.
Porque a sua vida se compromete com a libertação dos mais
pobres, sem alardes, sem teoria, apenas com os gestos da proximidade, que
comunica de igual para igual, não julga, não censura, é fraterna, é responsável
até ao limite pelo outro. Dá-se em diaconia e em substituição do próximo,
afirmando o amor na sua forma mais pura e incondicional, porque cria as
condições para que os oprimidos descubram todo o alcance libertador que se
encontra em deslocar o ídolo (a pedra milagrosa, que partida renasce os
estilhaços) do seu “espaço transcendente” para o espaço mundano que lhe convém:
ao lado da cinza e da terra.
Convém referir o sentido que a “pedra” tem na obra de Camus:
é o peso maior que submerge a existência, expressão da sua finitude: o
sofrimento, a injustiça social, a fealdade, enfim a morte. Transportar a pedra
até ao fim é, como diz no Mito de Sísifo,
fazer a experiência do absurdo até ao fim, não renunciando à vida mas
afirmando-a sempre, sem esperança de saída, para que cada um possa dizer para
si próprio, como é proclamado pelo narrador naquela obra: “é preciso imaginar
Sísifo feliz”.
No próximo post, colocarei um excerto em que o engenheiro d’Arras
toma sobre a sua cabeça a pedra, que o cozinheiro não conseguira transportar.
Nota: as citações são retiradas do livro de contos O Exílio e o Reino, Ed. Livros do Brasil,
s/d.