“Isto são vidros a partir. Não estás a ouvir os estilhaços a cair? Olha, agora são pedras atiradas às paredes e à porta de ferro da loja. Agora são as pessoas a rir. Porquê? E agora são os soldados a cantar.”
(excerto de: Os Cães e os Lobos, de lrène Némirovsky, Relógio d’Água)
O trecho descreve um pogrom antijudaico durante a Ocupação nazi de França. A enunciação em discurso direto indica a existência de uma clivagem interna entre o acontecimento e os seus intervenientes e alguém que, do exterior, o viveu e agora o narra, a própria autora.
A pergunta, na sua crueza, esbarra como um vazio
ininteligível à espera de uma resposta contra a violência gratuita e jubilosa
dos sodados e das “pessoas” que com eles são coniventes.
Mas jamais terá uma resposta porque a essência das
perseguições e do seu desfecho no Holocausto representam um limite a toda a
teoria.
Duas palavras sobre o romance.
O título do livro, publicado em 1940 na língua
francesa, indica dois grupos de judeus, de diferentes geografias e com atitudes
distintas relativamente à assimilação: “os cães” são os que residem nos
subúrbios da moda e que se esqueceram das suas origens; “os lobos” sãos os
judeus de Leste que procuram conservar as suas raízes e manter as suas
tradições.
O tema da obra é a assimilação dos judeus, mas
estruturado a partir de uma situação amorosa triangular. A questão da
assimilação era relevante para qualquer judeu por várias razões: a expressão numérica
dos judeus em França (cerca de um milhão); o antissemitismo era latente na
sociedade francesa, desde o caso Dreyfus, pelo menos.
Os três personagens do livro são jovens, com relações
familiares, a residir num gueto: Ada, Ben e Harry
Ada, a personagem central, é uma pintora introvertida.
Num primeiro momento é submissa, mas depois tona-se decidida. Vivendo uma
relação amorosa triangular e especular: ela deseja um primo longínquo, idealizado
(Harry), e um primo com quem ela foi educada (Bem) deseja-a a ela.
Ada considera que a escolha a fazer no plano cultural –
ser judia ou francesa - tem de se fundamentar nas razões da educação e da tradição
e não do amor. Por isso, escolhe o lado dos lobos. Harry sente que a
assimilação lhe será conveniente, materialmente, mas sente-o como uma traição,
uma máscara que lhe vem ferir a sua carne, a sua matriz cultural.
Esta história de amor dividido e infeliz é afinal a
história do povo judeu: cindido entre uma memória com a qual comunica em
espelho, imaginariamente, e obrigado a viver em contragosto uma conformidade a
uma tradição cultural alheia.
Pode ler-se online um trabalho de análise, em francês,
da autoria de Ana Fernandes, da Universidade do Porto.