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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Nuno Crato: um ventríloquo espúrio de Hayek (a propósito do cheque-ensino)

O título deste comentário justifica-se com base na aprovação em Conselho de Ministros, a 5 de Setembro último, do “Novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo”, que prevê a realização de contratos simples como os pais, o designado cheque-ensino. O esclarecimento cabal do que está em jogo nesta "investida" - para mim é disso que se trata – torna necessário fazer uma análise crítica das razões políticas que o Ministério da Educação e a direita possam invocar para avançar com este desiderato, bem como do fundamento ideológico que se encontra subjacente à interpretação que o Governo faz do texto constitucional neste assunto.
Quanto a este último ponto, considero que Crato, sob a batuta da ideologia neoliberal deste Governo, procura realizar, sem que disso tenha consciência explícita, o projeto reformador de uma “utopia liberal”, de matriz contra-revolucionária, proposto por Hayek nestes termos: “ … um programa que não seja nem uma simples defesa da ordem estabelecida nem uma espécie de socialismo diluído, mas um verdadeiro radicalismo liberal que não poupe as suscetibilidades dos poderes (incluindo os sindicatos), que não seja demasiado prático e não se confine ao que parece politicamente possível hoje.” (cf. Hayek, Studies in Philosophy, Politics and Economics, 1967)).
Esta programa, que tem vindo a ser realizado pelo atual Governo, é a matriz à luz da qual um conjunto de decisões políticas vem tomando forma, por exemplo, falando das mais recentes: a proposta de entrega à exploração privada  uma de uma parte da Zona Económica Exclusiva do espaço marítimo; a liberalização de amplos setores de âmbito público e a sua exploração por interesses privados como a Portugal Telecom, a TAP, a seguradora da Caixa Geral de Depósitos, os CTT, etc..
É assim necessário proceder a uma análise das razões constitucionais alegadas para implementar o cheque-ensino, o que requer uma competência de exegese constitucional apurada, que não possuo em termos jurídicos, e das razões pragmáticas também aduzidas. Para daí se concluir tanto os limites hermenêuticos do intérprete como a verdadeira finalidade da medida.
A fidelidade ao programa referido é um elemento constituinte determinante da pré-compreensão da interpretação normativo-constitucional do Governo dos artigos da Constituição: artigo 36º, que estabelece que os pais têm “o direito à educação dos filhos", e o 43º, que estabelece “a liberdade de aprender e de ensinar", e "o direito de criação de escolas particulares e cooperativas".
Ao partir da positividade de uma norma e daí inferir a consequência para um caso concreto, segundo uma metodologia jurídica clássica, o Governo esquece que o Direito Constitucional hoje, e a sua concretização nas leis, tem de tomar em linha de conta tanto a evolução político-histórica da democracia bem como as ruturas fundamentais, as quais delimitam os argumentos da interpretação histórica. A escola pública foi uma das instituições dessa evolução, que interessa sobretudo promover para realizar mais eficazmente a sua missão, bem como a constitucionalização dos direitos sociais.
Com efeito, a liberdade dos indivíduos (e nem sequer é adequado falar na “liberdade das famílias”, a não ser como extrapolação) constitui um dos alicerces dos Estados de Direito. Mas é preciso esclarecer este noção: liberdade não é só não estar proibido de fazer algo (a liberdade negativa); é também a liberdade enquanto capacidade de escolha (a liberdade positiva).
Assim, se perguntarmos: pode um indivíduo com poucos recursos e com uma socialização dificilmente compatível com a aquisição de uma cultura erudita ser capaz de exercer a sua liberdade? Estará em condições equivalentes aos que se encontram na situação simétrica? Qual a função do Estado? Todas estas questões confluem para o princípio da igualdade, sendo este o nó górdio que interessa deslindar.
À primeira vista, a atribuição daquele cheque às famílias em mais dificuldades parece ser uma boa solução. Mas é compatível tal decisão com a aplicação em todos os casos da medida? Os que, candidatando-se ao ensino particular e não entram, tanto por limites institucionais como por o Estado estar limitado financeiramente, não se sentirão defraudados nas suas expetativas e não acusarão o poder de violar o princípio da equidade? E não estará o Estado, com o dinheiro de todos, a financiar interesses privados, que têm quase sempre em mira o lucro? E tem o Estado condições de regulação e de monitorização dos critérios de seleção dos alunos que vão frequentar essas escolas?
A resposta às questões parece-me evidente: tal lei não é de aplicação em todos os casos, os que não têm acesso sentem-se injustiçados, o Estado não dispõe de meios financeiros nem de capacidade de regulação no setor, colocando-se escandalosamente ao serviço dos interesses privados. A consequência de tudo isto é esta: a escola pública como instituição do Estado perde a sua centralidade no sistema de ensino nacional e tenderá para ser submetida a um cada vez mais apertado controlo de contenção de gastos, com a consequência da perda da sua eficácia educacional e do seu prestígio público.
A igualdade que está na base da liberdade-capacidade sai neste lance inexoravelmente ferida: o cheque-ensino vem acentuar ainda mais a diferenciação social existente, gritante, e vem reforçar os interesses económicos da dominação financeira com que temos que nos haver no dia a dia.
Mas o Governo usa ainda, para justificar a sua concretização da medida em análise, um argumento suplementar. Trata-se da sua confirmação experimental, a propalada melhoria da qualidade de ensino que o privado introduz no sistema. São necessários estudos de sociologia da educação (não os temos, mas eles existem noutros países, não sendo ainda possível neste momento saber com precisão se a melhoria deve ser atribuída à essência do setor privado ou outras variáveis de difícil mensuração.
É sempre bom, como remate, o exemplo da Finlândia: com o melhor sistema educacional a nível mundial, com 1% de ensino particular.
Assim, o ensino particular deve figurar no seu estatuto de subsidiariedade, como está consagrado na lei. A liberdade de ensino está reconhecida constitucionalmente, como o está a “liberdade das famílias” poderem escolher a escola dos seus filhos. Nada justifica, pela análise que esbocei, agravar o que já está mal no panorama da educação nacional.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Imprecação contra a guerra civil “larvar”, pela mão de Tucídides



Imagem em vaso de cerâmica grega (www.flickr.com)

Há um texto de Tucídides que nos fala de uma guerra civil que ocorreu numa cidade-Estado grega durante a Guerra do Peloponeso (431-404), talvez o primeiro relato bélico verídico da história do Ocidente. A pungência das palavras de Tucídides deve calar fundo em nós, pois qualquer guerra não é a continuação da política por outros meios, ela é a própria destruição da política como ordem de regulação dos conflitos entre as pessoas, os grupos e as nações. É assim pertinente trazer este texto de Tucídides à colação.
A ilha do Corfú (Córcira), situada no mar jónio (na zona ocidental da Grécia), ocupava uma posição estratégica nas rotas comerciais com o Ocidente (Magna Grécia). Aliada de Atenas, enfrentou o dilema interno de manter-se fiel a esta aliança ou tomar o partido de Esparta. Este dilema foi protagonizado pelas duas fações políticas – aristocratas e democratas – que entraram em rota de colisão que conduziu à guerra civil.
O relato de Tucídides dá conta das causas que desencadearam a guerra, dos interesses económicos e políticos envolvidos e da incapacidade dos beligerantes ouvirem a voz da razão.
Ora, hoje, a ausência de guerra fratricida em que a Europa tem vivido nas últimas décadas não cria imunidades sempiternas ao devir da história. Por isso, o tema da guerra civil, de todas as guerras civis do passado e de hoje, mantém-se em frente das nossas consciências como um alerta e como um desafio que nos deve mover a ser “obreiros da paz”.
Como? Cada um tem que encontrar as modalidades da sua ação transformativa, de que brota a paz. Mas o exercício de um pensamento esclarecido sobre o paradoxo com que as sociedades modernas se debatem, divididas entre a amplidão das exigências de justiça, como condição para a fruição de uma vida digna, e a persistência de entraves de vária ordem a esse desiderato afigura-se como um caminho necessário para o serviço da paz.
Não havendo respostas acabadas já pré-fabricadas à altura das necessidades do nosso tempo, contudo há que assumir o legado de pensamento que foi eficaz no passado e que, no presente, reinterpretado, pode de novo ser operatório. Para este fim, o método mais seguro é o exercício dos poderes de uma razão dialógica, pois só ela permite alcançar critérios de consenso para a solução dos problemas. Mas a condição deste exercício da razão enraíza-se necessariamente numa ética de verdade e de reconhecimento da alteridade como valor, pelo menos equivalente, ao da singularidade do próprio.
O debate esclarecido, em que cada um é capaz de ouvir as razões do outro e colocar-se no seu lugar, não esquecendo de incluir nesse espaço todos os que se encontram numa situação cultural e social deprimida e que, por isso, não têm oportunidade de fazer ouvir as suas vozes, é o caminho certo vencer as aporias e encontrar o rumo certo a trilhar.
Estre trabalho da razão deve ser feito ao mesmo tempo que deve prosseguir o combate efetivo: individual e coletivamente, sob as modalidades supletivas da solidariedade social; ou sob as formas políticas adequadas à situação, desde a reivindicação salarial, a contestação esclarecida e firme (greves, manifestações), a resistência individual às decisões injustas da autoridade, o apelo às instâncias do direito internacional.
Mesmo assim, todo o desfecho está sempre em suspenso e, por isso, a eventualidades da guerra paira sempre como uma nuvem ominosa sobre as nossas cabeças. Usemos todos os recursos, sobretudo os da razão e do reconhecimento do valor do outro como absoluto, para prevenir os dias da ira de todas as guerras.
É tempo de dar a ler o texto de Tucídides:
“Tais foram os excessos de crueldade a que a revolução levou, e eles pareceram ainda mais brutais porque foram os primeiros a ocorrer; mais tarde, praticamente todo o mundo helénico ficou convulsionado, pois nas várias cidades os chefes das respetivas fações democráticas enfrentavam os oligarcas, já que os democratas queriam chamar os atenienses e os oligarcas os lacedemônios.
Com efeito, em tempo de paz não teriam pretexto nem ousadia para pedir a intervenção, mas agora, que as duas alianças estavam em guerra, cada fação, nas várias cidades, se desejava uma revolução, achava fácil recorrer a aliados, para de um só golpe fazer mal aos adversários e fortalecer sua própria causa.
Dessa forma, as revoluções trouxeram para as cidades numerosas e terríveis calamidades, como tem acontecido e continuará a acontecer enquanto a natureza humana for a mesma; elas, porém, podem ser mais ou menos violentas e diferentes em suas manifestações, de acordo com as várias circunstâncias presentes em cada caso. Na paz e prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores sentimentos, porque não são forçados a enfrentar dificuldades extremas; a guerra, ao contrário, que priva os homens da satisfação até das suas necessidades quotidianas, é uma mestra violenta e desperta na maioria das pessoas paixões em consonância com as circunstâncias do momento.
Assim, as cidades começam a ser abaladas pelas revoluções, e as que são atingidas por estas mais tarde, conhecendo os acontecimentos anteriores, chegam a extravagâncias ainda maiores em iniciativas de uma engenhosidade rara e em represálias nunca antes imaginadas.
A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo os caprichos dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente torna-se cobardia dissimulada; a moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível merece sempre confiança e o seu oposto torna-se suspeito. O conspirador bem-sucedido é inteligente, e ainda mais aquele que o descobre, mas quem não aprova esses procedimentos é tido como traidor do partido e um cobarde diante dos adversários.
Em suma, ser o primeiro nessa corrida para o mal e compelir a entrar nela quem não queria é motivo de elogios. Na realidade, os laços de parentesco ficam mais fracos do que os de partido, no qual os homens se dispõem mais decididamente a tudo ousar sem perda de tempo, pois tais associações não se constituem para o bem público respeitando as leis existentes, mas para violarem a ordem estabelecida ao sabor da ambição. Os compromissos tiram a sua validade menos da sua força de lei divina do que da ilegalidade perpetrada em comum.
Palavras sensatas ditas por adversários são recebidas, se estes prevalecem, com desconfiança vigilante ao invés de generosidade. Vingar-se de uma ofensa é mais apreciado do que não haver sido ofendido. Os juramentos de reconciliação só têm valor no momento em que são feitos, pois cada lado só se compromete para fazer face a uma emergência, não tendo a mínima força, e aquele que, em qualquer ocasião, vendo um adversário desprevenido, é o primeiro a atrever-se e acha a sua vingança mais agradável, por causa do compromisso rompido, do que se atacasse abertamente, levando em conta não somente a segurança de tal procedimento, mas também a circunstância de, por vencer mediante falsidade, estar fazendo jus a elogios pela sua astúcia.
De um modo geral, os homens passam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos do que tolos honestos, envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro.
A causa de todos esses males era a ânsia de chegar ao poder por cupidez e pela ambição, pois destas nasce o radicalismo dos que se entregam ao faciosismo partidário. Com efeito, os líderes partidários emergentes nas várias cidades, usando em ambas as fações palavras especiosas (uns falavam em igualdade política para as massas, outros em aristocracia moderada), procuravam dar a impressão de servir aos interesses da cidade, mas na realidade serviam-se dela; valendo-se de todos os meios para impor-se uns aos outros, todos ousavam praticar os atos mais terríveis, e executavam vinganças ainda piores, não nos limites da justiça e do interesse público, mas pautando a sua conduta, em ambos os partidos, pelos caprichos do momento; sempre estavam prontos, seja ditando sentenças injustas de condenação, seja subindo ao poder pela violência, a agir em função das suas rivalidades imediatas.
Consequentemente, ninguém tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom termo um plano odioso, sob o manto de palavras enganosas, eram considerados os melhores, e os cidadãos que não pertenciam a um dos dois partidos eram eliminados por ambos, por não fazerem causa comum com eles ou simplesmente pelo despeito de vê-los sobreviver.”
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso, Livro III, capítulo 82


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A filiação neoliberal do relatório o FMI sobre a reforma do Estado para Portugal



A putativa solicitação de um relatório ao FMI sobre a reforma do Estado por parte do governo português leva a supor a existência de várias possibilidades de justificação para a atitude: o ter considerado o Governo que o documento que daí viesse seria cientificamente credível para um aconselhamento neste domínio; o ter visado fundamentalmente uma captatio benevolentia por parte do FMI, para reafirmar mais uma vez a subserviência agradecida do pobre de mão estendida; o ter pretendido um texto que servisse de cobertura “técnica”, sabendo-se a orientação ideológica daquela instituição, de pendor neoliberal, para o seu desejo de subversão social e constitucional, e como garantia para não ter de soletrar tal desejo a medo.
Considero que a primeira possibilidade, pelos autores de “estudo” e pelas referências que convocam logo no preâmbulo (Musgrave, mais sério, e Buchanan, um ideólogo disfarçado de economista) é falsa, pois o documento não é “tecnicamente correto e equilibrado” (como diz o Governo).
 Logo, trata-se de um texto de pseudo-ciência económica, mais ideológico do que técnico, que serve ao Governo de cobertura para o que desejaria fazer, mas não vai ser capaz de fazer. E que, por outro lado, serve também a intenção indicada na segunda possibilidade.
Se algumas ideias ou propostas são putativamente aceitáveis como matéria de reflexão, embora num quadro referencial diverso, em muitos outras instâncias poderia o Governo inspirar-se com mais acerto e sem termos de ser confrontados com um argumento de terror, apontando, com a espada de Dâmocles, às nossas cabeças.
Para argumentar o meu ponto de vista, vou explicitar as linhas de pensamento de Buchanan – a sua matriz ideológica conservadora e aspetos da sua conceptualização da economia - na medida em que é ele, na minha hipótese, mais do que Musgrave, quem está subjacente ao articulado do documento do FMI. O que circunscreve significativamente o alcance deste comentário, que não entra na análise do texto, mas intenta situar-se na sua montante, na explicitação de alguns pressupostos ideológicos que o subtendem.
James Buchanan é um dos mais influentes economistas da escola económica neoliberal, que trabalha com elementos da Escola Austríaca e da Escola de Chicago, e tomou importância por ter contribuído para a construção do edifício da “teoria da escolha pública” (“Public Choice”) e por ter sido laureado com o Prêmio Nobel de Economia, em 1986.  
Segundo esta escola, as políticas do Estado Social enfermam de três problemas:
- os custos crescentes das políticas sociais são tendencialmente insuportáveis e perniciosos para os fundos públicos, gerando inflação e dívida;
- os efeitos dessas políticas sobre os valores e os comportamentos
de indivíduos, dos grupos sociais e das empresas são prejudiciais porque não incentivam a iniciativa individual nem estimulam a criação de riqueza;
- a máquina administrativa para a implementação das políticas sociais, pelo seu gigantismo, acaba por ter efeitos negativos tanto na tomada da decisão como nas instituições democráticas.
Diagnosticada a doença, o remédio proposto é a supremacia do  mercado. Pois, só este garante, mediante a alocação de recursos, a criação de riqueza e a sua distribuição sob a forma de bens e de serviços de um modo eficiente e promovendo a justiça.
Ao invés do mercado, da intervenção da autoridade pública só decorrem distorções (já assinaladas) no bom funcionamento do mercado
Por um lado, leva a que as empresas desviem recursos produtivos para atividades improdutivas, por ex. o financiamento de campanhas eleitorais visando tirar partido ou “colonizar” a instituição favorecida. Por outro lado, o Estado, protegendo desmesuradamente os direitos adquiridos, é negativo para o mercado, porque limita o âmbito da sua intervenção (a escola e a saúde públicas estão-lhe barradas), protege o trabalho em excesso, tornando-o pouco flexível, estimula uma mentalidade de dependência do Estado e não acicata o investimento dos ricos.
 Para explicitar o carácter conservador deste neoliberal, fá-lo-ei em três momentos.
 Num primeiro momento, transcrevo um excerto que permite pôr ante os nossos olhos o discurso moralista, retrógrado e catastrofista de Buchanan, a apelar adequada medicina corretiva: “durante varias décadas (...) a nossa ordem moral tem estado num processo de erosão. Um número cada vez maior de pessoas parece terem-se tornado anarquistas morais, perdendo o sentido de respeito mútuo pelos outros, sem qualquer propensão a comportar-se segundo regras e códigos de conduta generalizáveis.” (Buchanan, 1986)
A mesma forma mentis do autor vem já de trás, como esta passagem de outra obra deixa transparecer: (...) (tem-se observado) uma erosão generalizada na conduta pública e privada, atitudes crescentemente liberalizadas no que diz respeito a atividades sexuais, uma vitalidade declinante da ética puritana do trabalho, deterioração na qualidade dos produtos (...), corrupção difundida tanto no setor governamental quanto no privado, e, finalmente, aumentos percetíveis na alienação dos eleitores diante do processo político. (Buchanan & Wagner, 1977).
Num segundo momento, destaco a identificação das causas principais da erosão da ética puritana referida, tomando por base a obra Democracy in deficit: the political legacy of Lord Keynes (1999). Na substância, é um libelo acusatório ao modelo da democracia de massas na sua forma atual,  cuja natureza a torna ingovernável, e à macroeconomia keynesiana, que não compreendeu o que era a economia ao ter pensado que as variáveis económicas (emprego,  inflação preços) podiam ser previstas e controláveis e que assim distorceu o funcionamento do mercado e a sua capacidade autoregulativa.
E, por isso, considera Buchanan, o que os economistas que seguiram na peugada de Keynes disseram sobre a crise de 2008-9 foi completamente “irrelevante e inoperante”: “[..] So much of economists have said , and say now, is exposed as irrelevante and essencial useless. Economists are embarassed by their inability to offer “scientific” explanations for the 2008-9 crises or to advance suggestions to reform”, in Economists Have No Cloths”(site: http://www.rmm-journal.de/downloads/010_buchanan.pdf)
Sejamos aqui irónicos: só o iluminado Buchanan, talvez assistido por uma graça especial do céu – ou talvez do diabo, pois também este é Lucifer (o que traz a luz) – foi o chamado para perceber realmente tudo o que se passa neste terreno e para comunicar urbi et orbe a boa nova salvífica.
Ora o nosso aprendiz de feiticeiro esclarece-nos, no ensaio anterior referido, o que é a economia: “uma norma que institui um conjunto de trocas interligadas que conduzem a resultados, mensuráveis a posteriori, mas não previsíveis nem controláveis a priori” “The economy, in some inclusive inclusive definitional sense,  is perhaps best described as na order that consists of na interlinjked set of exchanges, simple and complex, from which outcomes emerge that may in some respects be meaningfully measured but cannot be chosen, and thereby controlled, by concentrated decision makers.” (cf. ib.idem)
Aqui se encontra o cerne do ataque a Keynes. O valor dos resultados que se alcançam e as suas implicações sociais não entram em linha de conta nesta definição, porque afinal eles são uma função da lógica do mercado. Acreditando nas virtualidades endógenas deste, a resultante só pode ser a maximização da utilidade geral.
Esta crença no valor absoluto e exclusivo do mercado é uma reencarnação duma velha narrativa, que a história e a ciência económica já varreram como lixo perigoso da face da terra. Mas o Nobel Buchanan continua a acreditar na Fénix encantada.
Num terceiro ponto, refiro a medicina que Buchanan propõe para a redenção através do mercado, que passa por um conjunto de mudanças constitucionais e legais que limitem o âmbito de ação do Estado, tanto na sua esfera económica como na social.
Este aspeto encontra nesta passagem do mesmo ensaio a seguinte  explicitação: “o caminho pragmático (a seguir) envolve esforços para mudar os parâmetros da política e para gerar resultados que diferem dos correntemente observados ou produzidos, por existir ou não um conjunto de normas, pode não cumprir o que parece ser requerido aqui. Uma mais dramática revolução constitucional pode ser necessária. “As noted, the strictly pragmatic route that involves efforts to shift policy parameters so as to generate outcomes that differ from those currently observed, as produced by the existing (or nonexisting) set of rules, may not accomplish what seems to be required here. A more dramatic constitucional revolution may be necessary.”(cf. “Constitutional Revolution?” id.ibid.)
Só pois com mudanças profundas na ordem jurídica do Estado pode a moralidade fiscal, ferida de morte pelas políticas económicas de raiz keynesiana, renascer sob a forma de restrições deliberadas em direção a um horizonte pré-keynesiano.
Afinal, é neste retrocesso ao passado, quando o Estado se limitava ao serviço da economia mediante a criação das condições operacionais (militares, judiciais, educativas  e obras públicas)  ao  bom funcionamento daquela.
Esta revolução constitucional, se necessária, deveria incluir uma norma que obrigasse os políticos ao retorno ao princípio ético de orçamento equilibrado, cuja violação seria objeto de sanção tanto interna como externa por parte dos decisores políticos. E para que o orçamento seja equilibrado é preciso que se verifique uma equiparação entre as despesas do Estado e as receitas dos impostos e taxas.
Num quarto ponto, o pensamento Buchanan sobre a dívida pública é muito significativo: há uma dívida pública boa, que não afeta a economia, quando os títulos são comprados com a intenção de um ganho futuro. A legitimação do papel do Estado na criação do capital financeiro parece-me clara. Para Buchanan é perfeitamente legítimo: “A economia […] não sofre nenhum sacrifício ou encargo quando a dívida pública é criada [podendo um título de dívida ser adquirido por um comprador] … O facto de que os recursos económicos são abandonados quando a despesa pública é feita não demonstra a existência de sacrifício ou encargo para nos membros do grupo social… Não é o comprador de títulos de dívida que sacrifica  quaisquer recursos económicos no processo. Ele faz uma troca presumivelmente favorável deslocando o curso temporal do seu resultado.”  (“If an individual freely chooses to purchase a government bond, he is, presumably, moving to a preferred position on his utility surface by so doing. He has improved, not worsened, his lot by the transaction  . . .  The economy, considered as the sum of the individual economic units within it, undergoes no sacrifice or burden when debt is created. . . . The fact that economic resources are given up when the public expenditure is made does not, in any way, demonstrate the existence of a sacrifice or burden on individual members of the social group. . . . It is not the bond purchaser who sacrifices any real economic resources anywhere in the process. He makes a presumably favorable exchange by shifting the time shape of his income stream.” (cf. Buchanan, Public Principles of Public Debt, 1958)
Nesta forma de pensar faz-se uma legitimação do papel do Estado: sempre que as suas decisões não afetam a economia e podem favorecer os interesses individuais, então tem carta branca para funcionar. Mas, interrogo, o Estado fica a ganhar na parada? Não sendo economista, não posso responder assertivamente, mas intuitivamente penso que não.
Num quinto ponto, refiro o método de diagnóstico da situação existente – “a procura de rendas” (“rent-seeking”) - segundo o qual as políticas públicas e as estratégias macroeconómicas das democracias de massas, pelas razões anteriormente referidas, acabam por atribuir aos indivíduos e às empresas vantagens de posições por artifícios legais, em troca de favores monetários ou de apoio político.
Transcrevo uma passagem onde o instrumento de análise da "rent-seeking" se expõe:“ (…) o que deveríamos prever quando a política cria oportunidades de lucros ou rendas? O investimento será atraído em direção a essas oportunidades (…) e engendrará tentativas de acesso a rendas (…) e haverá desperdício de recursos em investimentos destinados a assegurar a fatia favorecida. […] Como a expansão moderna do Governo oferece mais oportunidades para a criação de rendas, devemos esperar que o comportamento maximizador de utilidade dos indivíduos os leve a desperdiçar tais recursos na tentativa de assegurar “rendas” ou “lucros” prometidos pelo Governo.” (Cf. Buchanan, “The economic Theory of Politics Reborn”, in Challenge, 31 (2), 1988)
Acerta na mouche, neste ponto, Buchanan. A corrupção da política nas nossas democracias é um facto bem real. Por exemplo, em Portugal, aí vão  alguns exemplos: os gestores dos fundos imobiliários que dominam a política fiscal são nomeados pelo sistema financeiro; cerca de 1/3 dos deputados têm ligações ao mundo dos negócios; grandes grupos de advogados, que somam contam chorudas pelos seus pareceres ao Governo, são supervisores do Banco de Portugal; o Estado celebrou contratos com setores privados que potenciaram a dívida, sem solução à vista (caso de muitas PPP); há situações de benefício fiscal para o sistema financeiro; há capitalizações para a banca sem a garantia de adequado benefício nem para o Estado nem para a economia (a propósito, alguém sabe explicar a recente implicação do Governo no aumento de capital do Banif); continuam a manter-se mordomias para elementos de sectores profissionais mais influentes …
Mas uma coisa é a virtualidade do método para a correção dos vícios de um Estado; outra coisa é o seu uso para subverter a natureza do Estado. Ora, Buchanan usa este método para este propósito, como se constata pelo que se referiu nos pontos anteriores sem exceção.
Assim, a crise por que passamos exige uma reforma do Estado, sem dúvida. Mas não nos termos em que o relatório aponta, pondo em causa aspetos fundamentais do Estado Social. Seguir este modelo, que tem por base o magistério de Buchanan, seria “escovar a história a contrapelo”, fazendo tábua rasa do adquirido civilizacional. A crise tem soluções, difíceis e duras, mas não é por este caminho do terror que se encontra uma solução compatível com as exigências de liberdade efetiva e justiça social, património inalienável da nossa civilização.