CRUIKSHANK, George -1792-1878 - “BONEY STARK MAD”
Tradução do título: "Bonaparte louco de raiva ou mais navios, colónias e comércio”,
caricatura de 02.01.1808, British Museum, sobre a chegada das tropas napoleónicas invasoras a Lisboa e a expulsão do rei português para o Brasil a mando inglês
Envelhecia
em paz, até à chegada do coronel Joll, da temida Terceira Divisão da Guarda
Civil. Com ordens de promover uma missão contra os bárbaros, Joll confronta-se
com os princípios do magistrado, que inicialmente se mantém discreto na defesa
dos seus ideais. Mas, com as práticas desumanas utilizadas pelo coronel, o
magistrado vai deixando transparecer o seu desconforto, perguntando quem são os
verdadeiros bárbaros, até ser considerado um traidor.
Vou
servir-me do fio da narrativa aplicando-a, com as devidas distâncias, à nossa
situação atual de subordinação “colonial” aos impérios da finança internacional
e ao Diktat dos coronéis e funcionários dos FMIs.
A
notícia de hoje do Jornal de Negócios, que indica a receita proposta pelo FMI a
seguir por Portugal para recuperar os 4000 milhões em falta, foi o seu pretexto
imediato deste plágio. Ainda atónito face ao despudor de penalizar sempre os
mesmos, os que estão na mó de baixo, fica-me a dúvida se os funcionários destes
próceres chegarão um dia ao desfecho do funcionário de Coetze. Este, por erro
de análise da situação ou por tibieza moral, pensava, com toda a sua bondade,
estar a servir a paz pública, mas estava a servir os interesses do império. Pode
assim servir como alegoria dos funcionários que hoje, nos centros de decisão do
Levitã que comanda o funcionamento dos Estados, esmifram até ao tutano o sangue
dos mais fracos, todos nós. Mas às vezes o feitiço vira-se contra o feiticeiro.
A história é lenta mas está aberta.
Acto
1 - O funcionário combate na defesa dos bárbaros:
“Numa
determinada época do ano, sabe, os nómadas visitam-nos para negociar. Bem: vá
até qualquer barraca do mercado nessa época e veja quem é roubado no peso, é
enganado, ofendido e intimidado. Veja quem é forçado a deixar as suas mulheres
para trás, no acampamento, por medo de que sejam insultadas pelos soldados.
Veja quem está caído bêbado na sarjeta, e veja quem pontapeia aquele que está
caído. É esse desprezo pelos bárbaros, desprezo demonstrado pelo menor dos
moços de estrebaria ou camponês, que eu como magistrado venho combatendo há
vinte anos.”
Acto
2 - O funcionário bondoso está atento:
“Não
ouço nenhum dos gritos do celeiro que, posteriormente, muitos afirmariam ter
ouvido. Em cada momento dessa noite, enquanto me dedico aminhas ocupações,
estou ciente do que pode estar a acontecer, e os meus ouvidos estão mesmo
ajustados às vibrações do sofrimento humano. Mas o celeiro é uma construção
sólida, com portas pesadas e janelas pequenas; fica além do matadouro e do
moinho, ao sul da aldeia. Afinal, o que, outrora, foi um posto avançado e,
depois, um forte fronteiriço acabou por se transformar numa colônia agrícola,
numa aldeia de três mil almas; aqui, o bulício da vida, o bulício que
todas essas almas são capazes de fazer, numa noite quente de verão, não cessa
simplesmente porque, em algum lugar, alguém está a gritar. (De certo modo,
começo a pleitear em causa própria.
Acto
3 - O funcionário exemplar acaba por sancionar a opressão :
“Não
me queria envolver nisso. Sou um magistrado rural, um alto funcionário do
Império, e estou completando o meu tempo de serviço nesta fronteira pacata, à
espera da aposentadoria. Recolho o dízimo e os impostos, administro as terras
comunais, abasteço a guarnição militar, supervisiono os funcionários novos, que
são os únicos que temos aqui, controlo o comércio, presido o tribunal de
justiça duas vezes por semana. No mais, contemplo a alvorada e
o pôr-do-sol, como, bebo e estou satisfeito. Espero merecer três linhas na
Gazeta Imperial ao morrer. Nunca pedi mais que uma vida tranquila em tempos
tranquilos. No ano passado, contudo, começaram a chegar notícias da
capital sobre a inquietação entre os bárbaros. Mercadores que viajavam por
estradas seguras foram atacados e saqueados. O roubo de gado cresceu em escala
e em audácia. Um grupo de funcionários do censo desapareceu e foi encontrado
enterrado em cova rasa. Dispararam contra o governador provincial durante uma
viagem de inspeção. Houve choques com as patrulhas fronteiriças. Segundo os
boatos, as tribos bárbaras estavam a armar-se; o Império tinha de
tomar medidas preventivas, pois, certamente, haveria guerra.”
Ato
4 - O funcionário assiste, como Gyges da fábula de Platão, à diversão dos
“civilizados”:
“Durante
alguns dias, os pescadores, com o seu estranho tagarelar, a sua falta de
vergonha animal, o seu apetite enorme, a sua índole volúvel, são uma diversão.
Os soldados, recostados na soleira da porta, observam-nos, riem-se, fazendo a
seu respeito comentários obscenos e incompreensíveis para eles; sempre há
crianças com o rosto comprimido contra as grades do portão; e, de minha janela,
fico a olhar atentamente para baixo, invisível atrás da vidraça.”