Mostrar mensagens com a etiqueta especulação financeira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta especulação financeira. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Imprecação contra a guerra civil “larvar”, pela mão de Tucídides



Imagem em vaso de cerâmica grega (www.flickr.com)

Há um texto de Tucídides que nos fala de uma guerra civil que ocorreu numa cidade-Estado grega durante a Guerra do Peloponeso (431-404), talvez o primeiro relato bélico verídico da história do Ocidente. A pungência das palavras de Tucídides deve calar fundo em nós, pois qualquer guerra não é a continuação da política por outros meios, ela é a própria destruição da política como ordem de regulação dos conflitos entre as pessoas, os grupos e as nações. É assim pertinente trazer este texto de Tucídides à colação.
A ilha do Corfú (Córcira), situada no mar jónio (na zona ocidental da Grécia), ocupava uma posição estratégica nas rotas comerciais com o Ocidente (Magna Grécia). Aliada de Atenas, enfrentou o dilema interno de manter-se fiel a esta aliança ou tomar o partido de Esparta. Este dilema foi protagonizado pelas duas fações políticas – aristocratas e democratas – que entraram em rota de colisão que conduziu à guerra civil.
O relato de Tucídides dá conta das causas que desencadearam a guerra, dos interesses económicos e políticos envolvidos e da incapacidade dos beligerantes ouvirem a voz da razão.
Ora, hoje, a ausência de guerra fratricida em que a Europa tem vivido nas últimas décadas não cria imunidades sempiternas ao devir da história. Por isso, o tema da guerra civil, de todas as guerras civis do passado e de hoje, mantém-se em frente das nossas consciências como um alerta e como um desafio que nos deve mover a ser “obreiros da paz”.
Como? Cada um tem que encontrar as modalidades da sua ação transformativa, de que brota a paz. Mas o exercício de um pensamento esclarecido sobre o paradoxo com que as sociedades modernas se debatem, divididas entre a amplidão das exigências de justiça, como condição para a fruição de uma vida digna, e a persistência de entraves de vária ordem a esse desiderato afigura-se como um caminho necessário para o serviço da paz.
Não havendo respostas acabadas já pré-fabricadas à altura das necessidades do nosso tempo, contudo há que assumir o legado de pensamento que foi eficaz no passado e que, no presente, reinterpretado, pode de novo ser operatório. Para este fim, o método mais seguro é o exercício dos poderes de uma razão dialógica, pois só ela permite alcançar critérios de consenso para a solução dos problemas. Mas a condição deste exercício da razão enraíza-se necessariamente numa ética de verdade e de reconhecimento da alteridade como valor, pelo menos equivalente, ao da singularidade do próprio.
O debate esclarecido, em que cada um é capaz de ouvir as razões do outro e colocar-se no seu lugar, não esquecendo de incluir nesse espaço todos os que se encontram numa situação cultural e social deprimida e que, por isso, não têm oportunidade de fazer ouvir as suas vozes, é o caminho certo vencer as aporias e encontrar o rumo certo a trilhar.
Estre trabalho da razão deve ser feito ao mesmo tempo que deve prosseguir o combate efetivo: individual e coletivamente, sob as modalidades supletivas da solidariedade social; ou sob as formas políticas adequadas à situação, desde a reivindicação salarial, a contestação esclarecida e firme (greves, manifestações), a resistência individual às decisões injustas da autoridade, o apelo às instâncias do direito internacional.
Mesmo assim, todo o desfecho está sempre em suspenso e, por isso, a eventualidades da guerra paira sempre como uma nuvem ominosa sobre as nossas cabeças. Usemos todos os recursos, sobretudo os da razão e do reconhecimento do valor do outro como absoluto, para prevenir os dias da ira de todas as guerras.
É tempo de dar a ler o texto de Tucídides:
“Tais foram os excessos de crueldade a que a revolução levou, e eles pareceram ainda mais brutais porque foram os primeiros a ocorrer; mais tarde, praticamente todo o mundo helénico ficou convulsionado, pois nas várias cidades os chefes das respetivas fações democráticas enfrentavam os oligarcas, já que os democratas queriam chamar os atenienses e os oligarcas os lacedemônios.
Com efeito, em tempo de paz não teriam pretexto nem ousadia para pedir a intervenção, mas agora, que as duas alianças estavam em guerra, cada fação, nas várias cidades, se desejava uma revolução, achava fácil recorrer a aliados, para de um só golpe fazer mal aos adversários e fortalecer sua própria causa.
Dessa forma, as revoluções trouxeram para as cidades numerosas e terríveis calamidades, como tem acontecido e continuará a acontecer enquanto a natureza humana for a mesma; elas, porém, podem ser mais ou menos violentas e diferentes em suas manifestações, de acordo com as várias circunstâncias presentes em cada caso. Na paz e prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores sentimentos, porque não são forçados a enfrentar dificuldades extremas; a guerra, ao contrário, que priva os homens da satisfação até das suas necessidades quotidianas, é uma mestra violenta e desperta na maioria das pessoas paixões em consonância com as circunstâncias do momento.
Assim, as cidades começam a ser abaladas pelas revoluções, e as que são atingidas por estas mais tarde, conhecendo os acontecimentos anteriores, chegam a extravagâncias ainda maiores em iniciativas de uma engenhosidade rara e em represálias nunca antes imaginadas.
A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo os caprichos dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente torna-se cobardia dissimulada; a moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível merece sempre confiança e o seu oposto torna-se suspeito. O conspirador bem-sucedido é inteligente, e ainda mais aquele que o descobre, mas quem não aprova esses procedimentos é tido como traidor do partido e um cobarde diante dos adversários.
Em suma, ser o primeiro nessa corrida para o mal e compelir a entrar nela quem não queria é motivo de elogios. Na realidade, os laços de parentesco ficam mais fracos do que os de partido, no qual os homens se dispõem mais decididamente a tudo ousar sem perda de tempo, pois tais associações não se constituem para o bem público respeitando as leis existentes, mas para violarem a ordem estabelecida ao sabor da ambição. Os compromissos tiram a sua validade menos da sua força de lei divina do que da ilegalidade perpetrada em comum.
Palavras sensatas ditas por adversários são recebidas, se estes prevalecem, com desconfiança vigilante ao invés de generosidade. Vingar-se de uma ofensa é mais apreciado do que não haver sido ofendido. Os juramentos de reconciliação só têm valor no momento em que são feitos, pois cada lado só se compromete para fazer face a uma emergência, não tendo a mínima força, e aquele que, em qualquer ocasião, vendo um adversário desprevenido, é o primeiro a atrever-se e acha a sua vingança mais agradável, por causa do compromisso rompido, do que se atacasse abertamente, levando em conta não somente a segurança de tal procedimento, mas também a circunstância de, por vencer mediante falsidade, estar fazendo jus a elogios pela sua astúcia.
De um modo geral, os homens passam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos do que tolos honestos, envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro.
A causa de todos esses males era a ânsia de chegar ao poder por cupidez e pela ambição, pois destas nasce o radicalismo dos que se entregam ao faciosismo partidário. Com efeito, os líderes partidários emergentes nas várias cidades, usando em ambas as fações palavras especiosas (uns falavam em igualdade política para as massas, outros em aristocracia moderada), procuravam dar a impressão de servir aos interesses da cidade, mas na realidade serviam-se dela; valendo-se de todos os meios para impor-se uns aos outros, todos ousavam praticar os atos mais terríveis, e executavam vinganças ainda piores, não nos limites da justiça e do interesse público, mas pautando a sua conduta, em ambos os partidos, pelos caprichos do momento; sempre estavam prontos, seja ditando sentenças injustas de condenação, seja subindo ao poder pela violência, a agir em função das suas rivalidades imediatas.
Consequentemente, ninguém tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom termo um plano odioso, sob o manto de palavras enganosas, eram considerados os melhores, e os cidadãos que não pertenciam a um dos dois partidos eram eliminados por ambos, por não fazerem causa comum com eles ou simplesmente pelo despeito de vê-los sobreviver.”
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso, Livro III, capítulo 82


segunda-feira, 12 de novembro de 2012

As boas intenções e a especulação financeira




Em 2001,  a Presidência de Clinton (1993-2001) publicou um documento onde se fazia o balanço da ação da Administração durante este período.
Eram elencadas as várias áreas de intervenção, onde era feita uma avaliação celebrativa do progresso social e do “crescimento económico histórico” alcançados. Destacava-se que tais resultados se deviam à “modernização da nova economia através da tecnologia e do consenso da desregulação”.

O diagnóstico do sucesso é credível, mas o “consenso da desregulação” referido apaga a memória histórica do que aconteceu na Grande Depressão (1929-33): os efeitos catastróficos sobre o sistema financeiro e a economia decorrentes da especulação financeira. Esta rasura dos ensinamentos da história pode ter sido movida de boas intenções imediatas, mas não foi prudente nem policamente consequente.

A crise financeira que despoletou nos anos de 2008, em que ainda estamos mergulhados, poderia ter ocorrido – dada a natureza bipolar do sistema capitalista, em que alternam ciclos de expansão e de recessão – mas não se manifestaria com a gravidade da existente.

A responsabilidade de Clinton pela situação atual da crise financeira e do seu reflexo na economia e na sociedade deriva pois de um conjunto de medidas que foi tomando ao longo da sua Presidência.
Mas destaca-se, pela sua gravidade a revogação pelo Congresso, depois promulgada por Clinton, da lei de Roosevelt de 1933 (a Glass-Steagall Act), que surgiu como resposta à crise financeira de então. Nesta lei, distinguia-se a atividade dos bancos comerciais da dos bancos de investimento da Wall Street, de modo a proteger os depósitos privados da sua utilização em operações financeiras de alto risco.  

A nova lei de Clinton (a Gramm Leach Bliley-Act), ao fazer cair a barreira legal que limita a especulação, vem contribuir para a sua multiplicação pois permite o desvio para as operações financeiras do mercado secundário os montantes que estavam adstritos ao âmbito do mercado primário.

Esquecendo as consequências desastrosas contidas na especulação financeira para a atividade bancária, depositantes e economia no seu conjunto, a Adminstração Clinton entoava loas à nova medida nestes termos: “the historic legislation will better enable  American companies to compete in the new economy” (palavras do Secretário do Tesouro Lawrence Summers, após votação da lei).

Alguns senadores (apenas oito), durante a discussão da alteração da lei, alertaram para os riscos. Mas a maioria dos congressistas (republicanos e democratas em coligação de interesses”) alcançaram o referido “consenso da desregulação”, acreditando que estavam a servir o interesse da economia e esquecendo que assim deixavam à finança mãos livres para a a sua gula insaciável  pelo “vil metal”. 

Vale a pena reter a opinião de um desses senadores dissidentes do consenso, dirigindo-se da tribuna às duas bancadas do Congresso: “I want to sound a warning call to day about this legislation. I think this legislatin is just fundamentally terrible.”(cf. aqui)

A história, para nossa inglória, veio dar razão a esses senadores. E cá tanbém apenas poucos viram a tempo a tormenta que a finança desregulada vinha derramar sobre a economia e a sociedade. Louçã, como o disse na abertura do congresso de eleição da nova liderança do seu partido, é apenas um bom exemplo. 

Desde Max Weber que, em política, se sabe que não bastam boas intenções. É preciso também pensar nas consequências das decisões que se tomam, de acordo com os princípios de uma ética da responsabilidade.

Clinton, embalado pelos cantos de sereia, deixou-se enfeitiçar. Não soube, como Ulisses, regressar à sua casa, conservando-se fiel ao legado político que os seus lhe deixaram como resposta à crise financeira de 1929. Se tivesse tomado em linha de conta as causas que geraram essa crise, poderia ter percebido que, na conjuntura existente, a lei que adoptou iria conduzir aos mesmos efeitos daquela, só que mais graves dado o atual contexto de um mundo globalizado.