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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Para uma ontologia paradoxal do corpo, por Eduardo Prado Coelho: introdução

A Dança - Matisse

Prado Coelho interveio no espaço público português em vários âmbitos: na docência académica de Teoria da Literatura; na análise crítica de obras de literatura, de cinema e de dança; na intervenção cultural com artigos de opinião, com incidência na problematização da atualidade política; na criação ensaística; em comunicações de seminários; e no desempenho de funções culturais em França. 
Em 06/11/1997 teve lugar o 2º Encontro sobre o corpo “As Margens do Corpo”, na Faculdade de Motricidade Humana, tendo participado o ensaísta com a conferência “Corpo, cultura e ideologia”.

Estive presente com o Paulo Prudêncio (que no seu blog "Correntes" se referiu já a esse Encontro), a seu amável convite, e guardo uma memória grata do acontecimento. E vou procurar rememorar esse momento como tributo pessoal a Eduardo Prado Coelho, que infelizmente já não está entre nós.

Recorro para esse desiderato a alguns escassos apontamentos que guardei, explicitando a arquitetura de conjunto da conferência e descrevendo o processo seguido na sua explanação, com a resenha do seu conteúdo e das referências convocadas, que vão clarificando o horizonte de inteligibilidade sobre o corpo assumido pelo autor.

Aquela penúria obriga-me a incluir neste texto alguma passagem dos autores citados, que considere oportuna, sem distorcer ou subverter o que então foi dito. 

Sempre com recurso à citação de autores representativos do que tematizava, a conferência decorreu em três momentos principais: primeiro, focalizou as principais interpretações a que o tema tem sido sujeito; a seguir, trabalhou a relação do corpo com o espaço; finalmente, debruçou-se, sem menos detença, na relação corpo-eu.

 O orador orientou-se por um procedimento didático que facilitou a compreensão da informação fornecida e que, dada a relação feita de diferenciações, com ruturas e continuidades, entre os diferentes e singulares sistemas de significação, inculcou no auditório a noção de que a semiose do problema do corpo é um fieri, a continuar ad infinitum.

Esteve presente nesta démarche de Prado Coelho o seu dispositivo crítico, que se escora numa constelação de autores confluentes na validação da pertinência  (ontológica, epistemológica e semiótica) dos  princípios da alteridade e da diferença em detrimento da mesmidade e da unidade (Peirce, Blanchot, Deleuze, José Gil, Clarice Lispector, Duras et alii; cf. Os universos da Crítica, Cap. 18 “E tudo/o resto – é literatura”, pp. 479-526).

Neste sentido, desenharam-se duas matrizes concorrenciais em função das quais girou a exposição: a matriz fenomenológica, que se inspira em Husserl e remotamente em Descartes; e a matriz freudiana e marxista, presente em vários autores referenciados e que ocupou o maior espaço da comunicação.

 Logo no início, o conferencista fez um paralelo entre o discurso da ciência e o discurso da literatura: aquele toma o corpo como uma máquina, sendo a investigação conduzida com recurso à matemática (por ex. G. Borelli, anatomista francês do século XVIII), enquanto o segundo vê o texto literário como processo de tradução, num registo estético, do corpo nos seus vários atos expressivos de uma individualidade própria com uma determinada enquanto expressões e das várias modalidade em que se exprime (ex.: Balzac). São duas abordagens irredutíveis e desenhou-se desde logo o espaço em que o autor se iria mover: ciências humanas, filosofia e sobretudo a literatura.

Seguidamente, explicitou um conjunto de conceitos necessários para se proceder a uma reflexão ontológica sobre o corpo: ao movimento é à expressão já referidos, acrescentou o esforço e a instalação, subordinados às categorias do tempo e do espaço.

Neste horizonte, propõe a tese de Franços Dagognet: “le corps un et multiple”, que faz sua sem mais aclaramentos. A própria multiplicidade do corpo se manifesta igualmente nas várias narrativas que tematizam o corpo, referenciando aquilo a que chamou “quatro corpos”.  Na convicção, talvez, de que se possa revelar o sentido deste dito de Beckett: “Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro. Mover-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Não. Sair nenhum. Voltar nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado”. (“Worstward ho”, Pioravante marche)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Psicografia da senhora de Templin



A senhora de Templin – a Chanceler Angela Merkel - é hoje a papisa da Europa, o seu magister dixit, de dedo estendido, dita a lei. A diversidade das opiniões e a complexidade dos problemas com que o espaço europeu e o mundo vivem é mais um motivo para o seu espírito encontrar (ou pensar que encontra) a linha de rumo que forneça um enquadramento da sua ação politica.  
Mas ela não anda a reboque da história, porque a sua configuração mental está bem alicerçada, tanto em valores fundamentais quanto em hábitos de pensamento específicos, factos que aliados à sua personalidade combativa e à sua grande inteligência a colocaram no papel timoneiro que hoje desfruta.
Estando os destinos da Europa grandemente dependentes desta líder, é urgente a elaboração de um tentame de psicografia do sujeito, que ajudará sobretudo a determinar o que dela pode ser expectável.  Há que encontrar elementos na sua formação que estarão a determinar a sua praxis política.
Vou considerar dois: a sua educação luterana e os valores por ela veiculados; e a sua formação científica na área da química quântica.
O pai de Merkel, que participou ao lado do exército russo contra a invasão nazi da Rússia, tornou-se pastor luterano da cidade de Templin. Naturalmente, pela sua participação na guerra do lado soviético e pela sua conceção do lugar da religião na vida, manteve boas relações, até mesmo de privilégio, com o regime comunista da RDA, sendo crítico da política da RFA e do processo de Reunificação. A sua ação no mundo real esgotou-se na ação educacional, tendo criado uma biblioteca para a comunidade, e no serviço religioso da salvação das almas.
Esta é a atitude fundamental em relação à política proposta por Lutero, que deixou assim na sua Igreja um rasto de subserviência e de conformismo em relação ao poder político e económico, não obstante a coragem legítima revelada  na sua revolta religiosa contra o Papado. Como exemplo do conservadorismo de Lutero, menciono  a sua posição de condenação das revoltas camponesas, lideradas por Thomas Münzer, contra os abusos dos príncipes. Marx e Ernst Bloch dão-nos bons enfoques desse acontecimento histórico bem como da dimensão profética do homem revolucionário.
Lutero considera que a fé é o único meio da salvação e que ela se encontra nos ensinamentos bíblicos, enquanto Münzer  coloca a origem daquela na interioridade do homem. São duas atitudes opostas em relação à situação do homem no mundo: a fé para Lutero requer as boas obras, que vem compensar as misérias trazidas ao mundo pela injustiça que nele há; para Münzer onde a fé mora, aí tem de ser plantada a justiça, mesmo que por meios revolucionários.
É neste horizonte ideológico que a Chanceler Angela Merkel, ao longo da infância e da juventude, vai estruturando a sua personalidade, ficando marcada pelos traços de obediência incondicional a Deus, de dedicação ao trabalho, de espírito de sacrifício e de rigor no pensamento e na ação.
A par destes valores, manifesta a mesmo conformismo tacticista do pai em relação à ordem política vigente então na RDA: esteve envolvida na Freie Deutshe Jugend (a organização da juventude comunista da RDA), chegando a ser secretária da educação política desta. E é também significativo desta mesma atitude subserviente o facto de, no dia em que se celebrava a Queda do Muro de Berlim, ela ficar a trabalhar no seu laboratório, só aparecendo na rua no fim do trabalho.
A sua formação científica, com relevância para a matemática enquanto instrumento de descoberta das constantes presentes no fracionamento da complexidade quântica dos elementos, configurou-a para um tipo de raciocínio operacional sistémico, segundo o qual as diferenciações se esbatem e tornam inteligíveis num plano de conjunto. O grande empenho que pôs sempre no estudo, sempre com excelentes resultados mesmo na aprendizagem do russo, apenas reforça a ideia de que todas as peças se conjuguem numa sinfonia harmónica de conjunto.
Por outro lado, há na personalidade de Merkel um traço dinâmico, com uma provável base genética, que a dispõe para, quando as circunstâncias o exigem, pessoais ou objetivas, se capaz de decidir em descontinuidade com o que era esperável.
Foi assim que teve a coragem de se divorciar do primeiro marido, de quem ficou com o nome Merkel, e de aceitar entrar na política, numa ascensão progressiva até ao patamar atual. É revelador deste traço de decisão a presença de Catarina II da Prússia, cuja imagem está sempre sobre a sua secretária.
Quando se deu a mudança de regime na RDA, criaram-se as condições objetivas para a transferência destas atitudes básicas para a nova situação democrática emergente. Merkel vai cada vez mais aprofundando então a sua vinculação aos ideais democráticos emergentes, que existirão já muito antes do desabar do Muro, sendo impossível discernir como foi fazendo esta aprendizagem. Mas o cerne do problema encontra-se na compleição específica da sua personalidade, que só muda quando circunstâncias externas a isso obrigam.
Assim, mesmo considerando a sua capacidade de reorientar a sua trajetória política, o seu modo de pensar pode ser descrito a partir da lei da isocronia do  pêndulo, que estabelece que o tempo gasto por um corpo suspenso por um fio flexível em torno um ponto fixo, executa movimentos alternados em torno da posição central, na mesma unidade de tempo.
Merkel, como se fosse um pêndulo, foi obrigada pela história a oscilar entre dois mundos diametralmente opostos nos seus princípios. O seu ponto fixo – os seus valores e atitudes fundamentais – continuarão a estar presentes aqui como antes estiveram noutro lado.
E por isso quando chegou à política, sem para isso estar fadada, foi capaz de decidir por ela própria esse novo caminho a seguir, mas só pode estar nele ao seu modo, com a firmeza das posições que assume fundadas na sua convição de que isso é o mais justo e segundo procedimentos que julga pragmáticos, que herda de toda a sua formação, e fundamentalmente do seu trabalho científico no laboratório.
A cosmovisão metafísica que é a sua (em que o sim e o não se excluem mutuamente), de base religiosa, e o quadro científico positivista a partir dos quais pensa e interfere nos acontecimentos históricos colocam as seguintes e magnas questões: 
- será esta grelha de análise, mesmo convocando o apoio de modelos de volatilidade estocástica, capaz de interpretar adequadamente a complexidade das relações entre os homens, nos seus vários domínios, podem ser interpretados?
- não o sendo, cairá Merkel na conta  de que o tempo oportuno da grande decisão está à beira do esgotamento?
O dia-a-dia dos europeus, mesmo que o modelo de Merkel seja racional (o equilíbrio das finanças como condição do crescimento económico), vai-se agravando, o que prova que aquela receita que se vai seguindo não é eficaz.
É preciso experimentar novas soluções para encontrar uma linha de resolução do problemas que nos afetam. Não há problemas insolúveis na vida das sociedades: o que é preciso é a ousadia inventiva de encontrar as melhores respostas a partir dos instrumentos de análise que se revelaram com sucesso noutras situações críticas. 
Assim, só a luta social e a boa argumentação política, numa conjugação de esforços multilaterais, poderão operar o clinamen que desviará a rota do pêndulo de Merkel em benefício da Europa.