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Embrace (Lovers II) - Schiele |
A explicitação do
sentido do enunciado foi feita a partir da figura “O corpo do Outro”, que se
inclui no livro de Roland Barthes Fragmentos
de um discurso amoroso. O termo “figura” aqui usada toma o sentido, de
acordo com Barthes, do próprio discurso que o sujeito apaixonado faz, na
primeira pessoa, da sua experiência libidinal (que abrange o plano mental e o
emocional) quando ele se encontra na presença do amado adormecido.
E procedeu à leitura de
excertos da “figura” selecionada de Fragmentos
de um discurso Amoroso:
“O seu corpo estava dividido
– de um lado o próprio corpo – a pele, os olhos –terno caloroso, e do outro,
a voz, breve, moderada, sujeita a momentos de afastamento, (…)”;
“Assalta-me, por
vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (…) como se
quisesse ver o que está lá dentro (…) de modo frio e surpreso (…) se o corpo
que examino sai da sua inércia, (…) o meu desejo se modifica; se, por exemplo,
vejo outro pensar, o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário,
regresso à sua Imagem, a um Todo: amo novamente.”
É pelo olhar do corpo (a
pele, os olhos) que se atinge a “superfície”, a “margem de ação”, lexemas
usados por Prado Coelho na sua definição inicial. Em sentido conjuntivo se
devem interpretar estes lexemas.
O corpo é uma “superfície”,
uma pele, algo visível que abre o eu ao mundo como horizonte das suas
possibilidades (Winnicott fala da pele como “membrana do eu” e Didier Anzieu
fala de um “eu-pele”).
Mas é também uma “margem de
ação”: assim como a margem de um rio sofre alterações em função da força do
caudal, a metáfora usada sugere, com pertinência, a condição paradoxal do
corpo: as realizações do corpo (sensoriais, emocionais, discursivas), que
configuram o horizonte das suas significações, reenviam sempre para o desejo.
Mas a natureza inconsciente deste, que excede toda a significação temática,
como um significante flutuante, nunca tem completo preenchimento nas suas
realizações ou nas suas significações conscientes.
Por isso, o desejo aflora à
margem do corpo do outro de vários modos, dirigindo o olhar para zonas de
investimento libidinal, e, num ato de pensamento, quer fazendo-o descer até às
profundezas daquele. Mas, e este ponto é relevante, só quando o corpo do outro
se faz voz, se faz fala, o outro do meu desejo – a minha Imagem – me faz nascer
de novo o amor.
Se é no discurso que apaixonado
diz o seu amor, então a literatura torna-se um espaço próprio em que ele pode
ser enunciado, segundo formas e modos diferenciados.
Toda a literatura nasce
assim dessa ficção maior que é o amor: descrevendo as suas incertezas, os seus
obstáculos, os seus movimentos de aproximação e de separação, as suas
possibilidades ou impossibilidades, a sua morte inevitável ou a sua
transfiguração para além do tempo, a sua capacidade de abrir a porta da
esperança para transformar o mundo, enfim.
Se alguém acreditar no corpo
de Deus, que lhe vem falar ao coração, então também este poderá dizer, sempre
de novo, eu amo-te. Mas esta consequência excede o âmbito do que foi dito na
conferência, é apenas o desejo deste escriba.
Prado Coelho articula assim
o seu comentário sobre esta “figura” de Barthes, colocando-se no mesmo
horizonte de interpretação deste, isto é, a partir da interpretação de Lacan do
pensamento de Freud.
Neste quadro, demarca-se uma
perspetiva do corpo completamente diferente da fenomenológica (que expus na
Parte II deste resumo, em post anterior). Diferenças que levaram certos autores
a procurarem encontrar pontos de complementaridade entre a psicanálise e
a fenomenologia (Merleau-Ponty, Karl Jaspers, Binswanger).
Mas estas tentativas
chegaram a um beco sem saída: a incapacidade da fenomenologia descrever o que
se passa no âmbito das motivações inconscientes obrigou a continua a fragmentar
a compreensão do corpo a partir do dualismo cartesiano da consciência e do
corpo médico. Parece ser difícil encontrar essa “terceira linguagem”, além ou
aquém do dissenso onde ainda nos encontramos.