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sexta-feira, 21 de junho de 2013

Desobediência civil – um poema de António José Fortes






se a preguiça encantadora dos homens
deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo
unir os dias e as noites do desejo
então saudemos as grandes afirmações:
«a poesia deve ser feita por todos» e
«a poesia é feita contra todos»

os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta
fiquem os amantes obscuros e o único os raros
todos os nus
porque a língua portuguesa não é a minha pátria
a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria


Vêde
sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido
uma ave a sua plumagem de cores trémulas
e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem
e no entanto multidões de gnomos
cada qual com o seu estandarte
esperam à entrada dos cemitérios
para saudar o fogo-fátuo

eu passo de bicicleta à velocidade do amor
atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça
para oferecer aos revoltados


António José Fortes, uma faca nos dentes, c/pref. de Herberto Hélder e desenhos e fotografias de Aldina, Parceria A. M. Pereira, Liboa, 2003,  pp. 95-6


quinta-feira, 20 de junho de 2013

Herberto Hélder, Servidões: o poema como via mística

Os poemas do último livro de Herberto Hélder, enunciados na primeira pessoa, são apresentações de um sujeito que se buscou a si próprio enquanto vida “compacta e íntima” através da criação do poema enquanto entidade “gramatical”.

O texto em prosa com que o livro se inicia dá o mote dessa busca poética:
“Compreendi então: cumprira-se aquilo que eu sempre desejara – uma vida subtil, unida e invisível – que o fogo celular das imagens devorara. Era uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical.”(p. 19).

Por esta razão, estes poemas de carácter lírico reenviam para um horizonte de problematização ontológica, o momento em que o sujeito se autocompreende no presente a partir do arco hermenêutico da memória de toda a sua experiência passada e do horizonte de expetativa de uma vida a vir “sob o olhar da morte”.

O compromisso radical da escrita com a vida do poeta, sob o olhar da morte e da condenação do passado ao esquecimento, obriga-o a pensar a criação não como reunião das marcas de um saber insignificante da tagarelice comum, mas como a busca de uma “voz paupérrima”, compatível com uma revelação da “vida invisível” sempre procurada e agora, como diz S. Paulo, visada como “em espelho e em enigma”.

É nesta noite do despojamento, que o poema instaura, que o poeta espera ver surgir a vida invisível, procurada ao longo do seu percurso de autor. É por isso no poema, não no poeta que reside a verdade procurada.
Assim, esta poesia como trabalho da linguagem mergulha numa experiência de vida com uma abertura religiosa, com ressonâncias místicas.

A tópica “da noite obscura”, típica de místicos como Hildegaard von Bingen, Meister Eckhart ou S. João da Cruz, encontra-se presente no poeta.

Meister Eckhart, por exemplo, diz: “verdadeiramente, é na obscuridade que se encontra a luz e quando estamos tristes essa luz está mais próxima de todos nós.”

Herberto Hélder reescreve este pensamento neste poema:
“Talvez certa noite uma grande mão anónima venha por mim
um a um, lado a lado, escavando
escrito os nomes
um a um escrito os nomes mais esquecidos
e entre nomes mais obscuros o mais desmemoriado deles todos,
e eu esteja atrás vivendo desse próprio esquecimento,
a mão cortada, cortado o nome, além da morte escrita,
pelo buraco da voz o nome escoado para sempre.” (p. 117)

Esta meditação de Herberto Hélder, que foi feita em registo claramente cristão por Hildgaard von Bingen, pode ser escutada online, por exemplo, na peça musical "Ordo virtutum",  de Hildgaard von Bingen, sobre o caminho moral da alma das trevas do mundo para a luz de Deus.