Quantos frutos, quantos ventos, quantos mastros
de grandes odisseias? Quanto sofrimento
(ou quanto necessário atrevimento) num só grito?
Quanto de aparente força é só miragem,
só ânfora de vazio?
Quanto de excremento e lume
num céu de calma e mito?
Quanto do destino é um bojudo cofre
pejado só de medo? Quanto consumido sonho
no queimante vinho?
Quantas vidas em ti próprio?
Quantas côdeas e fermentos – perdidas
manchas a alastrar por esse mundo?
Quanto tempo?
- Não afirmes, não te apresses,
não respondas,
enquanto não souberes fazer perguntas.
João Rui de Sousa, Enquanto a noite, a Folhagem, Tertúlia, 1991, P. 94.
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quinta-feira, 20 de junho de 2013
sexta-feira, 14 de junho de 2013
Pitágoras: um poema de João Rui de Sousa
I
a força é como um boi enquanto os números
enquanto a
vida corre e não a morte
enquanto é
invenção sinal concreto
de iluminar
os seres e os ligar
enquanto é
substância de cimento
raiz nascer
em águas ordenadas
enquanto é
sol perfeito e crescimento
II
A noite é
como um prego enquanto os números
enquanto a
consciência já se abre
enquanto o
sol se espelha é um edifício
a caminhar
na erva iluminada
a noite é
como um prego enquanto segue
o esquadro e
o compasso deste vício
de alinhar
as cores mais desvairadas
ou de
queimar perfis de diversão
a noite é
como um prego enquanto o dia
ao calor da
paz se ordena instala
a rectidão
das coisas que nos guia
João Rui de
Sousa, Meditação em Samos, Ed. Galeria Panorama, 1970, 40-1
Comentário
Transcrevi
este poema com o intuito de evidenciar a noção da criação poética nele presente.
Trata-se de um trabalho exigente, um ofício órfico “alinhado a esquadro e a
compasso” a partir de um impulso originário, animal, “uma força como um boi”.
Dois autores
figuram na epígrafe da obra: Heráclito e Marco Aurélio. Para o primeiro, só o logos
que escuta o ser, que se revela ao homem, torna possível ao homem viver na
verdade. Para o segundo, esse mesmo logos torna o homem senhor da palavra
justa, que torna possível a vida boa em comum com os outros.
A poesia
abre assim o espaço onde se manifesta o fulgor do mundo e o ser humano encontra
a sua paz, abertura ao outro, encontro, solidariedade. Por isso, a poesia
torna-se uma busca ontológica ao serviço da realização moral do ser humano.
Tem assim
pleno cabimento a opinião de Gastão Cruz (cf. Poesia Portuguesa Hoje, 1973, p. 371), que considera que a poesia
de João Rui de Sousa se enraíza numa matriz clássica, sendo o poema ordenado e
modelado a partir de uma exigência geométrica: de equilíbrio, harmonia, ordem, nitidez.
A temporalidade da vida (“enquanto”) e a sua
procura de significação é construída com o recurso a palavras que denotam a
luta dos contrários (vida/morte; luz/escuridão; terra/fogo …), visando a dominância
dos substantivos traduzir a atitude de despojamento essencial necessário a um
existir regido pelo princípio de uma sabedoria, que a letra minúscula e ausência
de pontuação do poema acentuam.
Ao trazer ao
espaço público este excelente poeta, que, afora os meios académicos, se
encontra votado ao limbo do esquecimento, pela “excessiva” atenção concedida a
outros, procurei fazer-lhe justiça, modestamente. Oxalá outros partilhem também
deste sentimento.
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