A desobediência civil é a forma
específica do protesto em que a infração deliberada de uma lei se faz de modo
não- violento (com civilidade) e com a aceitação da sanção penal por parte do
infrator. De natureza política, assume a forma de um movimento coletivo em que
se pretende mudar uma determinada lei ou orientação política considerada
injusta.
A história política (sobretudo a dos
EUA, donde surgiram os mais relevantes contributos de reflexão teórica sobre o
assunto) apresenta-nos múltiplos exemplos em que os atos de desobediência civil
foram coroados de êxito, o que prova a sua eficácia como fator de estabilização
da conflitualidade social e de reforço das condições de uma sociedade mais
justa. Facto que reforça a tese dos que defendem o valor deste recurso de luta
política, contra os seus detratores.
A argumentação política e o suporte
jurídico que a justifica, de que a lei, produzida por um órgão legítimo de uma
ordem democrática onde reside a autoridade, exige estrita obediência por parte
daqueles a quem se dirige, não resiste a uma análise mais aprofundada. Para o
fazer, temos proceder a uma análise rigorosa de modo a:
1. determinar
(com recurso a Alain Touraine) o lugar do político na trama das relações
sociais, de modo a compreender o modo de articulação dialética do par
autoridade-obediência;
2. definir
a natureza do “contrato social” (na perspetiva de Hannah Arendt) que está
na base da ordem democrática.
3. circunscrever
as condições em que é legítimo, segundo John Rawls, o recurso à
desobediência civil, de modo a retirar a necessidade de uma
incorporação na Constituição do direito de desobediência civil.
Ponto1. O sociólogo Alain Touraine
considera que a cultura (valores, modelos e regras culturais) não surge como um
sistema independente da ação, mas antes em estreita relação com ela.
Deste modo, as várias instituições
(jurídicas, políticas, escolares, etc.) devem ser pensadas articuladamente nas
suas diferentes dimensões, no interior dos âmbitos da vida social, com as
diversas relações que as caracterizam.
Por isso, a “ordem social é
inteiramente o produto de relações sociais, sendo a partir destas deve ser
explicado o sentido do agir no qual o ator está implicado.
A capacidade que a sociedade tem de
se produzir a si mesma (historicidade) consiste num conjunto de orientações
culturais constituídas em práticas sociais, as quais não são controladas, na sua
criação e implementação, pelo conjunto do grupo. O que leva os excluídos a um
processo de reapropriação do objeto.
Neste quadro, a unidade das
sociedades modernas deve ser pensada como movimento de libertação da
criatividade humana, que se manifesta em todos os aspetos da organização
social. O que requer um alargamento do espaço público, uma maior
responsabilidade dos cidadãos pelos assuntos comuns e uma maior abertura do
poder político em relação às formas de dissenso emergentes dos grupos diretamente afetados
pelas decisões tomadas por aquele.
Ponto 2. “Na
sequência de Tocqueville, que admirava as «associações voluntárias», Arendt põe
em evidência que, num regime político onde as decisões são tomadas por maioria,
é necessário atender a voz das minorias, porque o seu silenciamento transforma
o “princípio da maioria” numa «ditadura da maioria».
Arendt
distingue duas aceções de contrato: tomado em sentido “vertical» e em sentido
“horizontal». A primeira, de Hobbes, consiste na submissão da
maioria dos indivíduos a uma minoria. A segunda, de Locke e de
Montesquieu, implica que cada indivíduo se comprometa a partilhar o poder com
os outros, instituindo assim uma comunidade fundada no princípio da liberdade entre
iguais. Na base desta aceção, encontra-se a ideia de que há, por parte de cada
contraente, um “consentimento tácito” em relação à matéria do próprio contrato.
Arendt
argumenta que a desobediência civil não viola o “contrato social” no qual o
indivíduo se comprometeu a obedecer às leis civis, porque ela emana deste, se o
tomarmos em sentido horizontal”. Numa sociedade fundada no contrato horizontal,
essencialmente democrática, a lei é o resultado de um debate entre iguais, no
espaço público, que conduz a um acordo.
A
"maioria" deve ser pensada como um "instrumento político"
necessário para a tomada de decisões e não como um “princípio político”, com
legitimidade para tomar decisões contra a minoria. Por isso, mesmo depois das
decisões tomadas e das leis votadas, a minoria tem o direito de continuar a
exprimir publicamente o seu ponto de vista.
Segundo H.
Arendt, o “princípio do consenso” implica, por essência, a “legitimidade do
dissentimento”. Tanto o acordo como o desacordo são constitutivos do debate que
ocorre no espaço público.
A própria
ideia de consenso é sempre provisória, passível de evoluir, por alteração ou
anulação para outro consenso. Não há o “consenso de direito” inamovível a todo
o potencial dissenso.