Há um texto de Tucídides que
nos fala de uma guerra civil que ocorreu numa cidade-Estado grega durante a
Guerra do Peloponeso (431-404), talvez o primeiro relato bélico verídico da
história do Ocidente. A pungência das palavras de Tucídides deve calar fundo em
nós, pois qualquer guerra não é a continuação da política por outros meios, ela
é a própria destruição da política como ordem de regulação dos conflitos entre
as pessoas, os grupos e as nações. É assim pertinente trazer este texto de
Tucídides à colação.
A ilha do Corfú (Córcira),
situada no mar jónio (na zona ocidental da Grécia), ocupava uma posição
estratégica nas rotas comerciais com o Ocidente (Magna Grécia). Aliada de
Atenas, enfrentou o dilema interno de manter-se fiel a esta aliança ou tomar o
partido de Esparta. Este dilema foi protagonizado pelas duas fações políticas –
aristocratas e democratas – que entraram em rota de colisão que conduziu à
guerra civil.
O relato de Tucídides dá
conta das causas que desencadearam a guerra, dos interesses económicos e
políticos envolvidos e da incapacidade dos beligerantes ouvirem a voz da razão.
Ora, hoje, a ausência de
guerra fratricida em que a Europa tem vivido nas últimas décadas não cria
imunidades sempiternas ao devir da história. Por isso, o tema da guerra civil,
de todas as guerras civis do passado e de hoje, mantém-se em frente das nossas
consciências como um alerta e como um desafio que nos deve mover a ser “obreiros
da paz”.
Como? Cada um tem que
encontrar as modalidades da sua ação transformativa, de que brota a paz. Mas o
exercício de um pensamento esclarecido sobre o paradoxo com que as sociedades
modernas se debatem, divididas entre a amplidão das exigências de justiça, como
condição para a fruição de uma vida digna, e a persistência de entraves de
vária ordem a esse desiderato afigura-se como um caminho necessário para o serviço
da paz.
Não havendo respostas
acabadas já pré-fabricadas à altura das necessidades do nosso tempo, contudo há
que assumir o legado de pensamento que foi eficaz no passado e que, no
presente, reinterpretado, pode de novo ser operatório. Para este fim, o método
mais seguro é o exercício dos poderes de uma razão dialógica, pois só ela
permite alcançar critérios de consenso para a solução dos problemas. Mas a
condição deste exercício da razão enraíza-se necessariamente numa ética de
verdade e de reconhecimento da alteridade como valor, pelo menos equivalente,
ao da singularidade do próprio.
O debate esclarecido, em que
cada um é capaz de ouvir as razões do outro e colocar-se no seu lugar, não
esquecendo de incluir nesse espaço todos os que se encontram numa situação
cultural e social deprimida e que, por isso, não têm oportunidade de fazer
ouvir as suas vozes, é o caminho certo vencer as aporias e encontrar o rumo
certo a trilhar.
Estre trabalho da razão deve
ser feito ao mesmo tempo que deve prosseguir o combate efetivo: individual e
coletivamente, sob as modalidades supletivas da solidariedade social; ou sob as
formas políticas adequadas à situação, desde a reivindicação salarial, a
contestação esclarecida e firme (greves, manifestações), a resistência individual
às decisões injustas da autoridade, o apelo às instâncias do direito
internacional.
Mesmo assim, todo o desfecho
está sempre em suspenso e, por isso, a eventualidades da guerra paira sempre
como uma nuvem ominosa sobre as nossas cabeças. Usemos todos os recursos,
sobretudo os da razão e do reconhecimento do valor do outro como absoluto, para
prevenir os dias da ira de todas as guerras.
É tempo de dar a ler o texto
de Tucídides:
“Tais foram os excessos de
crueldade a que a revolução levou, e eles pareceram ainda mais brutais porque
foram os primeiros a ocorrer; mais tarde, praticamente todo o mundo helénico
ficou convulsionado, pois nas várias cidades os chefes das respetivas fações
democráticas enfrentavam os oligarcas, já que os democratas queriam chamar os
atenienses e os oligarcas os lacedemônios.
Com efeito, em tempo de paz
não teriam pretexto nem ousadia para pedir a intervenção, mas agora, que as
duas alianças estavam em guerra, cada fação, nas várias cidades, se desejava
uma revolução, achava fácil recorrer a aliados, para de um só golpe fazer mal
aos adversários e fortalecer sua própria causa.
Dessa forma, as revoluções
trouxeram para as cidades numerosas e terríveis calamidades, como tem
acontecido e continuará a acontecer enquanto a natureza humana for a mesma;
elas, porém, podem ser mais ou menos violentas e diferentes em suas
manifestações, de acordo com as várias circunstâncias presentes em cada caso.
Na paz e prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores sentimentos,
porque não são forçados a enfrentar dificuldades extremas; a guerra, ao
contrário, que priva os homens da satisfação até das suas necessidades quotidianas,
é uma mestra violenta e desperta na maioria das pessoas paixões em consonância
com as circunstâncias do momento.
Assim, as cidades começam a
ser abaladas pelas revoluções, e as que são atingidas por estas mais tarde, conhecendo
os acontecimentos anteriores, chegam a extravagâncias ainda maiores em
iniciativas de uma engenhosidade rara e em represálias nunca antes imaginadas.
A significação normal das
palavras em relação aos atos muda segundo os caprichos dos homens. A audácia
irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a
hesitação prudente torna-se cobardia dissimulada; a moderação passa a ser uma
máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia
total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a
prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível merece sempre
confiança e o seu oposto torna-se suspeito. O conspirador bem-sucedido é
inteligente, e ainda mais aquele que o descobre, mas quem não aprova esses
procedimentos é tido como traidor do partido e um cobarde diante dos
adversários.
Em suma, ser o primeiro
nessa corrida para o mal e compelir a entrar nela quem não queria é motivo de
elogios. Na realidade, os laços de parentesco ficam mais fracos do que os de
partido, no qual os homens se dispõem mais decididamente a tudo ousar sem perda
de tempo, pois tais associações não se constituem para o bem público
respeitando as leis existentes, mas para violarem a ordem estabelecida ao sabor
da ambição. Os compromissos tiram a sua validade menos da sua força de lei
divina do que da ilegalidade perpetrada em comum.
Palavras sensatas ditas por
adversários são recebidas, se estes prevalecem, com desconfiança vigilante ao
invés de generosidade. Vingar-se de uma ofensa é mais apreciado do que não
haver sido ofendido. Os juramentos de reconciliação só têm valor no momento em
que são feitos, pois cada lado só se compromete para fazer face a uma
emergência, não tendo a mínima força, e aquele que, em qualquer ocasião, vendo
um adversário desprevenido, é o primeiro a atrever-se e acha a sua vingança
mais agradável, por causa do compromisso rompido, do que se atacasse
abertamente, levando em conta não somente a segurança de tal procedimento, mas
também a circunstância de, por vencer mediante falsidade, estar fazendo jus a
elogios pela sua astúcia.
De um modo geral, os homens
passam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos do que tolos honestos,
envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro.
A causa de todos esses males
era a ânsia de chegar ao poder por cupidez e pela ambição, pois destas nasce o
radicalismo dos que se entregam ao faciosismo partidário. Com efeito, os
líderes partidários emergentes nas várias cidades, usando em ambas as fações
palavras especiosas (uns falavam em igualdade política para as massas, outros
em aristocracia moderada), procuravam dar a impressão de servir aos interesses
da cidade, mas na realidade serviam-se dela; valendo-se de todos os meios para
impor-se uns aos outros, todos ousavam praticar os atos mais terríveis, e
executavam vinganças ainda piores, não nos limites da justiça e do interesse
público, mas pautando a sua conduta, em ambos os partidos, pelos caprichos do
momento; sempre estavam prontos, seja ditando sentenças injustas de condenação,
seja subindo ao poder pela violência, a agir em função das suas rivalidades
imediatas.
Consequentemente, ninguém
tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom
termo um plano odioso, sob o manto de palavras enganosas, eram considerados os
melhores, e os cidadãos que não pertenciam a um dos dois partidos eram
eliminados por ambos, por não fazerem causa comum com eles ou simplesmente pelo
despeito de vê-los sobreviver.”
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso,
Livro III, capítulo 82