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quinta-feira, 9 de maio de 2013

A dança como denúncia da inoperância política: o exemplo do bailado A Mesa verde de Kurt Jooss


O coreógrafo alemão Kurt Jooss ( 1901-) impôs na cena internacional  a dança livre de tendência expressionista, produzindo várias versões dos Ballets Russos.
A sua obra prima continua a ser, ainda hoje, o bailado A Mesa Verde, apresentada em Paris em 1932, o qual é uma parábola de denúncia da hipocrisia das conferências de paz e dos horrores da guerra.
No início do bailado, em volta de uma mesa verde, senhores ajaezados de modo grotesco (com perucas na cabeça e com fatos de cerimónia) discutem o destino da humanidade. Não havendo acordo, puxam das pistolas e recomeça a guerra.
Numa sequência de quadros em que os horrores da guerra se fazem sentir sobre os soldados e as populações, uma figura gigantesca, com o esqueleto desenhado nas suas vestes, executa a dança da Morte.
Após o que, mais uma vez, se retomavam as negociações de paz, nos mesmos moldes e com o mesmo desfecho. Nova tragédia estava à vista.
O bailado de Jooss assume, para nós hoje, um significado particular que interessa meditar. Ele foi premonitório, no momento em que surgiu (1932), do desastre que estava em marcha: o nazismo estava em ascensão galopante, que o levaria ao poder no ano seguinte, e a Alemanha estava assolada por uma crise económica e social crescente, na sequência da crise financeira de 1929-32. A guerra era uma possibilidade que se tornou uma realidade irreparável.
 Continua o bailado a lembrar-nos de que as soluções políticas, só por si, não imunizam contra as guerras. Temos que buscar os meios - e têmo-los - que previnam esse mal maior, sempre à espreita.

Deixo o vídeo do bailado: 




terça-feira, 26 de março de 2013

Adónis : “Os nossos passos são uma fila de mortos” – imprecação contra o morticínio em marcha na Síria

O Tempo

Abraço a espiga do tempo,
a minha cabeça é uma torre de fogo.
O que é este sangue que palpita na areia
e o que é este ocaso?
Chama do presente, o que podemos dizer?

Na minha garganta estão os fragmentos da História
e no meu rosto os sinais do sacrifício.
Que amargo é agora a linguagem!
E que estreita a porta do alfabeto!

Abraço a espiga do tempo
A minha cabeça é uma torre de fogo.
Converteu-se o amigo em carrasco?

Um vizinho disse-me: quanto tarda Hulagu a chegar!
Quem bate à porta? O cobrador de impostos?
Paga-lhe o imposto … silhuetas de mulheres
e de homens … imagens que caminham …
Trocámos sinais, intercambiámos segredos.
Os nossos passos são uma fila de mortos.
O teu morto vem do teu Senhor
ou o teu Senhor vem do teu morto?
Perdido pelo enigma, inclina-se
o arco do terror sobre os seus dias encurvados.

- Ele tinha um irmão. Desapareceu. O meu pai enlouqueceu.
Os meus irmãos morreram. A quem chamar?
Temos que abraçar a porta, suplicar ao tapete?
- Delira. Traz a caixa de rapé e cura-o com o rapé dos sábios.
Cadáveres que o assassino lê como se fossem anedotas.
O montão é um celeiro de ossos, a cabeça de um menino
ou um pedaço de carvão?

( …)

Selai estes ventos inconvenientes.
A História foi degolada
e isto não é mais do que o prelúdio.
Deixai ao verdugo, à vítima e ao sacrifício como mártires
e cobri-me com os seus restos
e desenhai-me uma ruína.
Assim arrancarei a sabedoria do seu jazigo
E gritarei: bem-vindos os meus escombros, a minha decadência.
Amanhã a morte soprar-me-á sem que me extinga,
amanhã sairei da luz para ir em direção a outra luz.
Certo de que sou mais frágil do que um fio
mas mais nobre do que um deus.
(…)

Adonis, excerto do poema “O Tempo”, in O Assédio de Beirute, 1985 . Esta tradução pessoal do excerto foi obtida a partir da espanhola, de María Luisa Prieto, que pode ver no site dedicado à poesia árabe.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Imprecação contra a guerra civil “larvar”, pela mão de Tucídides



Imagem em vaso de cerâmica grega (www.flickr.com)

Há um texto de Tucídides que nos fala de uma guerra civil que ocorreu numa cidade-Estado grega durante a Guerra do Peloponeso (431-404), talvez o primeiro relato bélico verídico da história do Ocidente. A pungência das palavras de Tucídides deve calar fundo em nós, pois qualquer guerra não é a continuação da política por outros meios, ela é a própria destruição da política como ordem de regulação dos conflitos entre as pessoas, os grupos e as nações. É assim pertinente trazer este texto de Tucídides à colação.
A ilha do Corfú (Córcira), situada no mar jónio (na zona ocidental da Grécia), ocupava uma posição estratégica nas rotas comerciais com o Ocidente (Magna Grécia). Aliada de Atenas, enfrentou o dilema interno de manter-se fiel a esta aliança ou tomar o partido de Esparta. Este dilema foi protagonizado pelas duas fações políticas – aristocratas e democratas – que entraram em rota de colisão que conduziu à guerra civil.
O relato de Tucídides dá conta das causas que desencadearam a guerra, dos interesses económicos e políticos envolvidos e da incapacidade dos beligerantes ouvirem a voz da razão.
Ora, hoje, a ausência de guerra fratricida em que a Europa tem vivido nas últimas décadas não cria imunidades sempiternas ao devir da história. Por isso, o tema da guerra civil, de todas as guerras civis do passado e de hoje, mantém-se em frente das nossas consciências como um alerta e como um desafio que nos deve mover a ser “obreiros da paz”.
Como? Cada um tem que encontrar as modalidades da sua ação transformativa, de que brota a paz. Mas o exercício de um pensamento esclarecido sobre o paradoxo com que as sociedades modernas se debatem, divididas entre a amplidão das exigências de justiça, como condição para a fruição de uma vida digna, e a persistência de entraves de vária ordem a esse desiderato afigura-se como um caminho necessário para o serviço da paz.
Não havendo respostas acabadas já pré-fabricadas à altura das necessidades do nosso tempo, contudo há que assumir o legado de pensamento que foi eficaz no passado e que, no presente, reinterpretado, pode de novo ser operatório. Para este fim, o método mais seguro é o exercício dos poderes de uma razão dialógica, pois só ela permite alcançar critérios de consenso para a solução dos problemas. Mas a condição deste exercício da razão enraíza-se necessariamente numa ética de verdade e de reconhecimento da alteridade como valor, pelo menos equivalente, ao da singularidade do próprio.
O debate esclarecido, em que cada um é capaz de ouvir as razões do outro e colocar-se no seu lugar, não esquecendo de incluir nesse espaço todos os que se encontram numa situação cultural e social deprimida e que, por isso, não têm oportunidade de fazer ouvir as suas vozes, é o caminho certo vencer as aporias e encontrar o rumo certo a trilhar.
Estre trabalho da razão deve ser feito ao mesmo tempo que deve prosseguir o combate efetivo: individual e coletivamente, sob as modalidades supletivas da solidariedade social; ou sob as formas políticas adequadas à situação, desde a reivindicação salarial, a contestação esclarecida e firme (greves, manifestações), a resistência individual às decisões injustas da autoridade, o apelo às instâncias do direito internacional.
Mesmo assim, todo o desfecho está sempre em suspenso e, por isso, a eventualidades da guerra paira sempre como uma nuvem ominosa sobre as nossas cabeças. Usemos todos os recursos, sobretudo os da razão e do reconhecimento do valor do outro como absoluto, para prevenir os dias da ira de todas as guerras.
É tempo de dar a ler o texto de Tucídides:
“Tais foram os excessos de crueldade a que a revolução levou, e eles pareceram ainda mais brutais porque foram os primeiros a ocorrer; mais tarde, praticamente todo o mundo helénico ficou convulsionado, pois nas várias cidades os chefes das respetivas fações democráticas enfrentavam os oligarcas, já que os democratas queriam chamar os atenienses e os oligarcas os lacedemônios.
Com efeito, em tempo de paz não teriam pretexto nem ousadia para pedir a intervenção, mas agora, que as duas alianças estavam em guerra, cada fação, nas várias cidades, se desejava uma revolução, achava fácil recorrer a aliados, para de um só golpe fazer mal aos adversários e fortalecer sua própria causa.
Dessa forma, as revoluções trouxeram para as cidades numerosas e terríveis calamidades, como tem acontecido e continuará a acontecer enquanto a natureza humana for a mesma; elas, porém, podem ser mais ou menos violentas e diferentes em suas manifestações, de acordo com as várias circunstâncias presentes em cada caso. Na paz e prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores sentimentos, porque não são forçados a enfrentar dificuldades extremas; a guerra, ao contrário, que priva os homens da satisfação até das suas necessidades quotidianas, é uma mestra violenta e desperta na maioria das pessoas paixões em consonância com as circunstâncias do momento.
Assim, as cidades começam a ser abaladas pelas revoluções, e as que são atingidas por estas mais tarde, conhecendo os acontecimentos anteriores, chegam a extravagâncias ainda maiores em iniciativas de uma engenhosidade rara e em represálias nunca antes imaginadas.
A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo os caprichos dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente torna-se cobardia dissimulada; a moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível merece sempre confiança e o seu oposto torna-se suspeito. O conspirador bem-sucedido é inteligente, e ainda mais aquele que o descobre, mas quem não aprova esses procedimentos é tido como traidor do partido e um cobarde diante dos adversários.
Em suma, ser o primeiro nessa corrida para o mal e compelir a entrar nela quem não queria é motivo de elogios. Na realidade, os laços de parentesco ficam mais fracos do que os de partido, no qual os homens se dispõem mais decididamente a tudo ousar sem perda de tempo, pois tais associações não se constituem para o bem público respeitando as leis existentes, mas para violarem a ordem estabelecida ao sabor da ambição. Os compromissos tiram a sua validade menos da sua força de lei divina do que da ilegalidade perpetrada em comum.
Palavras sensatas ditas por adversários são recebidas, se estes prevalecem, com desconfiança vigilante ao invés de generosidade. Vingar-se de uma ofensa é mais apreciado do que não haver sido ofendido. Os juramentos de reconciliação só têm valor no momento em que são feitos, pois cada lado só se compromete para fazer face a uma emergência, não tendo a mínima força, e aquele que, em qualquer ocasião, vendo um adversário desprevenido, é o primeiro a atrever-se e acha a sua vingança mais agradável, por causa do compromisso rompido, do que se atacasse abertamente, levando em conta não somente a segurança de tal procedimento, mas também a circunstância de, por vencer mediante falsidade, estar fazendo jus a elogios pela sua astúcia.
De um modo geral, os homens passam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos do que tolos honestos, envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro.
A causa de todos esses males era a ânsia de chegar ao poder por cupidez e pela ambição, pois destas nasce o radicalismo dos que se entregam ao faciosismo partidário. Com efeito, os líderes partidários emergentes nas várias cidades, usando em ambas as fações palavras especiosas (uns falavam em igualdade política para as massas, outros em aristocracia moderada), procuravam dar a impressão de servir aos interesses da cidade, mas na realidade serviam-se dela; valendo-se de todos os meios para impor-se uns aos outros, todos ousavam praticar os atos mais terríveis, e executavam vinganças ainda piores, não nos limites da justiça e do interesse público, mas pautando a sua conduta, em ambos os partidos, pelos caprichos do momento; sempre estavam prontos, seja ditando sentenças injustas de condenação, seja subindo ao poder pela violência, a agir em função das suas rivalidades imediatas.
Consequentemente, ninguém tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom termo um plano odioso, sob o manto de palavras enganosas, eram considerados os melhores, e os cidadãos que não pertenciam a um dos dois partidos eram eliminados por ambos, por não fazerem causa comum com eles ou simplesmente pelo despeito de vê-los sobreviver.”
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso, Livro III, capítulo 82