“Mais fácil
achou um prudente que seria acender dentro do mar uma fogueira, que espertar em
um peito vil fervores de nobreza. Com tudo ninguém me estranhe chamar nobre à
arte, cujos professores por leis divinas e humanas são tidos por infames. Essa
é a valentia desta arte, como a dos alquimistas, que se gabam que sabem fazer
ouro de enxofre: de gente vil faz fidalgos, porque aonde luz o ouro, não há vileza.
Além de que não é implicação acharem-se duas contrariedades em um sujeito,
quando respeitam a diferentes motivos. Que cousa mais vil, e baixa, que uma
formiga! Tão pequena, que não se enxerga; tão rasteira, que vive enterrada ;
tão pobre, que se sustenta de leves rapinas! Que cousa mais ilustre que o Sol,
que a tudo dá lustre; tão grande, que é maior que a terra; tão alto, que anda
no quarto céu, tão rico, que tudo produz! E se vê a maior nobreza com a maior
baixeza em um sujeito, em uma formiga.
Baixezas há
que não andam em uso, porque são só de nome: e nomes há, que não põem nem tiram,
ainda que se encontrem, porque se compadecem para diferentes efeitos. Fazia
doutrina um padre da Companhia, no pelourinho de Faro: perguntou a um menino
como se chamava? Respondeu: “Chamo-me, em casa Abraãozinho, e na rua Joanico.”
Assim são os ladrões: na Casa da Suplicação, chamam-se infames, quando os
sentenciam, que é poucas vezes: mas nas ruas, por onde andam de contínuo em alcateias,
têm nomeadas muito nobres, porque uns são Godos, outros chamam-se Cabos e
Xarifes outros: mas nas obras todos são piratas.
Mais claro
proponho e deslindo tudo. A nobreza das ciências colhe-se de três princípios. O
primeiro é objecto, ou matéria, em que se
ocupa;
segundo, as regras e preceitos de que consta; terceiro: os mestres e sujeitos que
a professam. Pelo primeiro princípio, é a teologia mais nobre que todas, porque
tem a Deus por objecto. Pelo segundo, é a filosofia, porque suas regras e
preceitos são delicadíssimos e admiráveis. Pelo terceiro, é a música, porque a
professam anjos, no céu, e, na terra, príncipes. E por todos estes três
princípios é a arte de furtar muito nobre, porque o seu objecto, e matéria em
que se emprega é tudo o que tem nome de precioso. As suas regras e preceitos são
subtilíssimos e infalíveis: e os sujeito e mestres que a professam, ainda que
mal as mais as vezes, são os que se prezam de mais nobres, para que não digamos
que são senhorias, altezas e majestades. (...)
E prouvera a
Deus, que não tivera tanto de nobre, não só pelo que lhe concedemos de suas
subtilezas, senão também, pelo que lhe negam outros da matéria, em que se ocupa,
e sujeitos, em que se acha; pois vemos, que a matéria é a que mais se estima,
ouro, prata, jóias, diamantes, e tudo o mais que tem preço; e os sujeito em que
se acha são, por meus pecados, os mais ilustres, como pelo discurso deste
tratado em muitos capítulos iremos vendo. E para que não engasgue algum
escrupuloso nesta proposição com a máxima, de que não há ladrão que seja nobre,
pois o tal ofício traz consigo extinção de todos os foros da nobreza; declaro logo
que entendo o meu dito segundo o vejo exercitado em homens tidos e havidos
pelos melhores do mundo, que no cabo são ladrões, sem que o exercício da arte
os deslustre, nem abata um ponto do timbre de sua grandeza”
Autor
anónimo, Arte de Furtar (1652),
Capítulo II, pp. 25-27, Editorial Estampa.
Comentário
breve:
A “nobre arte
de furtar” tratada neste livro, que estava em curso em Portugal, abrange o período
do domínio espanhol (1580-1640) até ao começo do reinado de D. João IV, a quem
a obra é dirigida na intenção de que este viesse a desenvolver uma ação de
saneamento da corrupção galopante em que o país estava mergulhado.
Trata-se
pois de um admirável documento histórico, que elenca os grupos sociais envolvidos
nessa prática de locupletação ativa: mercadores do comércio de além-mar;
fidalgos; agentes da justiça (juízes, advogados, procuradores, conselheiros,
escrivães, tabeliães); governadores locais (corregedores, alcaides); oficiais
mancomunados da Fazenda; traficantes de escravos; clérigos; e naturalmente o
reino de Castela (controlo alfandegário; tributação sem audição das Cortes;
extorsão ao clero, ordens militares, igrejas, clérigos).
A proposta
do livro é transparente, sempre atual: o ofício do príncipe é assegurar a paz
entre os vassalos, que se alcança mediante o respeito das leis. O que obriga o
príncipe a intervir de modo a impedir que a riqueza possa grassar pela
sociedade à rédea solta. Pois, como diz Aristóteles, “… mais mal fazem à
República os ricos, no tempo de paz, que os pobres, porque com o poder se
eximem da obediência das leis, e com a ociosidade estão prestes para motins, e
com as riquezas aptos para os sustentar. Impedem a reformação dos costumes,
relaxam a modéstia do povo com gastos supérfluos no comer e no vestir,
incitando o vulgo a desobedecer.”(op. cit. p. 112)
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