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A Dança - Matisse |
Prado Coelho interveio no
espaço público português em vários âmbitos: na docência académica de Teoria da
Literatura; na análise crítica de obras de literatura, de cinema e de dança; na
intervenção cultural com artigos de opinião, com incidência na problematização
da atualidade política; na criação ensaística; em comunicações de seminários; e
no desempenho de funções culturais em França.
Em 06/11/1997 teve lugar o
2º Encontro sobre o corpo “As Margens do Corpo”, na Faculdade de Motricidade
Humana, tendo participado o ensaísta com a conferência “Corpo, cultura e
ideologia”.
Estive presente com o Paulo
Prudêncio (que no seu blog "Correntes" se referiu já a esse
Encontro), a seu amável convite, e guardo uma memória grata do acontecimento. E
vou procurar rememorar esse momento como tributo pessoal a Eduardo Prado
Coelho, que infelizmente já não está entre nós.
Recorro para esse desiderato
a alguns escassos apontamentos que guardei, explicitando a arquitetura de
conjunto da conferência e descrevendo o processo seguido na sua explanação, com
a resenha do seu conteúdo e das referências convocadas, que vão clarificando o
horizonte de inteligibilidade sobre o corpo assumido pelo autor.
Aquela penúria obriga-me a
incluir neste texto alguma passagem dos autores citados, que considere
oportuna, sem distorcer ou subverter o que então foi dito.
Sempre com recurso à citação
de autores representativos do que tematizava, a conferência decorreu em três
momentos principais: primeiro, focalizou as principais interpretações a que o
tema tem sido sujeito; a seguir, trabalhou a relação do corpo com o espaço;
finalmente, debruçou-se, sem menos detença, na relação corpo-eu.
O orador orientou-se
por um procedimento didático que facilitou a compreensão da informação
fornecida e que, dada a relação feita de diferenciações, com ruturas e continuidades,
entre os diferentes e singulares sistemas de significação, inculcou no
auditório a noção de que a semiose do problema do corpo é um fieri, a continuar ad infinitum.
Esteve presente nesta
démarche de Prado Coelho o seu dispositivo crítico, que se escora numa
constelação de autores confluentes na validação da pertinência
(ontológica, epistemológica e semiótica) dos princípios da alteridade e
da diferença em detrimento da mesmidade e da unidade (Peirce, Blanchot,
Deleuze, José Gil, Clarice Lispector, Duras et alii; cf. Os universos da Crítica, Cap.
18 “E tudo/o resto – é literatura”, pp. 479-526).
Neste sentido, desenharam-se
duas matrizes concorrenciais em função das quais girou a exposição: a matriz
fenomenológica, que se inspira em Husserl e remotamente em Descartes; e a
matriz freudiana e marxista, presente em vários autores referenciados e que
ocupou o maior espaço da comunicação.
Logo no início, o
conferencista fez um paralelo entre o discurso da ciência e o discurso da
literatura: aquele toma o corpo como uma máquina, sendo a investigação
conduzida com recurso à matemática (por ex. G. Borelli, anatomista francês do
século XVIII), enquanto o segundo vê o texto literário como processo de
tradução, num registo estético, do corpo nos seus vários atos expressivos de
uma individualidade própria com uma determinada enquanto expressões e das
várias modalidade em que se exprime (ex.: Balzac). São duas abordagens
irredutíveis e desenhou-se desde logo o espaço em que o autor se iria mover:
ciências humanas, filosofia e sobretudo a literatura.
Seguidamente, explicitou um
conjunto de conceitos necessários para se proceder a uma reflexão ontológica
sobre o corpo: ao movimento é à expressão já referidos, acrescentou o esforço e
a instalação, subordinados às categorias do tempo e do espaço.
Neste horizonte, propõe a
tese de Franços Dagognet: “le corps un et multiple”, que faz sua sem mais
aclaramentos. A própria multiplicidade do corpo se manifesta igualmente nas
várias narrativas que tematizam o corpo, referenciando aquilo a que chamou
“quatro corpos”. Na convicção, talvez, de que se possa revelar o sentido
deste dito de Beckett: “Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde
nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro.
Mover-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Não. Sair nenhum. Voltar
nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado”. (“Worstward
ho”, Pioravante marche)
Também guardo uma grata memória dessa conferência. Ouvir Eduardo Prado Coelho e Bragança de Miranda durante umas boas horas de uma bela manhã de Novembro, num auditório edificado na floresta da Cruz Quebrada, é inesquecível, realmente.
ResponderEliminarAbraço.
Paulo Prudêncio.
É destes acontecimentos, onde as amizades se cimentam e estimulam na busca do conhecimento genuíno (sem relvas à mistura, que estamos todos carecidos. A prática só é eficaz quando é informada de uma boa teoria.
EliminarObrigado, Paulo, pelo comentário.