sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Para uma ontologia paradoxal do corpo, por Eduardo Prado Coelho: Parte II

Embrace (Lovers II) - Schiele
Dando continuidade  ao referido em posts anteriores sobre o tema, Eduardo Prado Coelho começou por definir o “segundo corpo” do seguinte modo: “é o corpo como superfície, como margem de ação”.
 A explicitação do sentido do enunciado foi feita a partir da figura “O corpo do Outro”, que se inclui no livro de Roland Barthes Fragmentos de um discurso amoroso. O termo “figura” aqui usada toma o sentido, de acordo com Barthes, do próprio discurso que o sujeito apaixonado faz, na primeira pessoa, da sua experiência libidinal (que abrange o plano mental e o emocional) quando ele se encontra na presença do amado adormecido.

E procedeu à leitura de excertos da “figura” selecionada de Fragmentos de um discurso Amoroso:

“O seu corpo estava dividido – de um lado o próprio corpo – a pele, os olhos –terno caloroso, e do outro,  a voz, breve, moderada, sujeita a momentos de afastamento, (…)”;

 “Assalta-me, por vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (…) como se quisesse ver o que está lá dentro (…) de modo frio e surpreso (…) se o corpo que examino sai da sua inércia, (…) o meu desejo se modifica; se, por exemplo, vejo outro pensar, o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso à sua Imagem, a um Todo: amo novamente.”

É pelo olhar do corpo (a pele, os olhos) que se atinge a “superfície”, a “margem de ação”, lexemas usados por Prado Coelho na sua definição inicial. Em sentido conjuntivo se devem interpretar estes lexemas.

O corpo é uma “superfície”, uma pele, algo visível que abre o eu ao mundo como horizonte das suas possibilidades (Winnicott fala da pele como “membrana do eu” e Didier Anzieu fala de um “eu-pele”).

Mas é também uma “margem de ação”: assim como a margem de um rio sofre alterações em função da força do caudal, a metáfora usada sugere, com pertinência, a condição paradoxal do corpo: as realizações do corpo (sensoriais, emocionais, discursivas), que configuram o horizonte das suas significações, reenviam sempre para o desejo. Mas a natureza inconsciente deste, que excede toda a significação temática, como um significante flutuante, nunca tem completo preenchimento nas suas realizações ou nas suas significações conscientes.

Por isso, o desejo aflora à margem do corpo do outro de vários modos, dirigindo o olhar para zonas de investimento libidinal, e, num ato de pensamento, quer fazendo-o descer até às profundezas daquele. Mas, e este ponto é relevante, só quando o corpo do outro se faz voz, se faz fala, o outro do meu desejo – a minha Imagem – me faz nascer de novo o amor.

Se é no discurso que apaixonado diz o seu amor, então a literatura torna-se um espaço próprio em que ele pode ser enunciado, segundo formas e modos diferenciados.

Toda a literatura nasce assim dessa ficção maior que é o amor: descrevendo as suas incertezas, os seus obstáculos, os seus movimentos de aproximação e de separação, as suas possibilidades ou impossibilidades, a sua morte inevitável ou a sua transfiguração para além do tempo, a sua capacidade de abrir a porta da esperança para transformar o mundo, enfim.

Se alguém acreditar no corpo de Deus, que lhe vem falar ao coração, então também este poderá dizer, sempre de novo, eu amo-te. Mas esta consequência excede o âmbito do que foi dito na conferência, é apenas o desejo deste escriba.

Prado Coelho articula assim o seu comentário sobre esta “figura” de Barthes, colocando-se no mesmo horizonte de interpretação deste, isto é, a partir da interpretação de Lacan do pensamento de Freud.

Neste quadro, demarca-se uma perspetiva do corpo completamente diferente da fenomenológica (que expus na Parte II deste resumo, em post anterior). Diferenças que levaram certos autores a procurarem encontrar pontos de complementaridade  entre a psicanálise e a fenomenologia (Merleau-Ponty, Karl Jaspers, Binswanger).

Mas estas tentativas chegaram a um beco sem saída: a incapacidade da fenomenologia descrever o que se passa no âmbito das motivações inconscientes obrigou a continua a fragmentar a compreensão do corpo a partir do dualismo cartesiano da consciência e do corpo médico. Parece ser difícil encontrar essa “terceira linguagem”, além ou aquém do dissenso onde ainda nos encontramos.

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