Bertolt Brecht é o criador de um misterioso personagem que figura em vários contos escritos ao longo de trinta anos: o senhor Keuner. São textos curtos (são raros os que ultrapassam uma página) que nos apresentam esse sábio pouco convencional, que usa a ironia filosófica como estratégia de corrosão das ideias dominantes (Propriedade, Indivíduo, Nação, Deus, Bondade, Honestidade, violência). Fazendo-as colidir com a realidade, desperta o sono dogmático do espectador, obrigando-o a abrir-se a um questionamento que o prepara para uma atitude prática.
Repare-se, no conto que se transcreve, como a prática desmente a teoria. A contradição despertará no espetador da peça uma atitude crítica, que o disporá a uma tomada de posição consequente. Eis o conto:
Quando o senhor Keuner, o Pensador, se pronunciou contra a violência
numa grande sala cheia de gente, reparou que as pessoas começaram logo a recuar
e a sair. Voltou-se e viu de pé, atrás de si (…) a Violência.
“O que dizias tu?”, perguntou-lhe a Violência.
“Pronunciava-me a favor da violência” , respondeu o senhor Keuner.
Quando o senhor Keuner saiu, os seus alunos quiseram saber o que era feito
da sua coragem. O senhor Keuner respondeu:
“A coragem que tenho não chega para me deixar açoitar. Isto porque
preciso de mais longa vida do que a violência.”
E contou a seguinte história:
“Um dia, nos tempos da ilegalidade, em casa do senhor Egge, que tinha
aprendido a dizer “não”, apareceu um agente com um documento assinado pelos que
reinavam na cidade, dizendo que todo o domicílio onde o portador pusesse o pé
passaria a ser propriedade sua; de igual forma, também passaria a pertencer-lhe
a comida que reclamasse, e todo o homem que se cruzasse com ele passaria a
estar ao seu serviço.
“O agente instalou-se numa cadeira, pediu
comida, lavou-se, deitou-se e, com o rosto voltado para a parede perguntou,
pouco antes de adormecer: “Estás
disposto a servir-me?
O senhor Egge tapou-o com uma manta, afugentou as moscas, ficou de
vigília enquanto ele dormia e continuou a obedecer-lhe durante sete anos. Não
obstante tudo o que lhe fez, houve uma coisa de que se absteve sempre:
pronunciar uma palavra, fosse ela qual fosse. O agente, que engordara de tanto comer,
dormir e mandar, passados sete amos morreu. O senhor Egge embrulhou-o, então,
na manta já gasta, arrastou-o para fora de casa, limpou a cama, caiou as
paredes, respirou fundo e respondeu: “Não!”
Bertolt Brecht, Histórias do Senhor Keuner, Hiena Editora,
pp.17-8
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