O 25 de Abril de 1974 é o acontecimento referencial em torno do qual se desenvolve toda a narrativa O dia dos prodígios de Lídia Jorge, que foi publicado em 1980 mas foi sendo escrito durante o período de 1975-76.
O espaço da ação é uma aldeia imaginária do Algarve – Vilamaninhos
-, isolada do mundo, vivendo os seus habitantes da agricultura e, por isso,
propensos a um imaginário mágico específico, onde o sonho e o canto servem de compensação
à precaridade das condições onde a vida decorre.
No romance, os personagens vão narrando nos seus
encontros, de modo dir-se-ia espontâneo, as suas vivências, expetativas e
apreciações acerca do mundo onde vivem e do externo, que lhes anuncia pela
rádio o episódio libertador de uma Revolução em Lisboa.
Esta polifonia de vozes dissonantes tem, contudo, um
bordão subjacente: todos desejam uma vida diferente. Mas revelam-se atitudes diferentes face ao acontecimento de Abril: Maria Rebôla acredita
que, pelo país, correm já o leite e o mel tão sonhados em abundância (cf. pp. 168-9); o seu tio, o velho José Jorge Júnior, manifesta com veemência a sua
descrença, invetivando a atitude dos que assim pensam, pois estão à espera que
a resposta para os seus problemas lhes caia do céu, instalando-se numa
passividade que só lhes traz prejuízos, até materiais (cf. pp. 164-6); mas há quem teime em
manter viva a esperança de um porvir diferente, mesmo quando a utopia de Abril desaba aos olhos de todos e os
ameaça de mortal desânimo. É esta a atitude do poeta-músico Macário, que, através das coplas do seu canto, continua a alimentar em permanência o desejo de “um outro mundo, dele fazendo comungar todos os que o escutam ( cf. pp. 192-3).
Deixo-vos este excerto admirável do romance, de modo a
cantarmos de novo um Abril que havemos de erguer mais pleno do que o que temos
na memória:
“Macário como se quisesse aliviar o coração, levantou
uma perna e iniciou as cantigas. Temos a tarde toda, oh gente. Isto hoje pode
não ter fim. Os vizinhos sentiram que a sombra concreta podia começar a chegar
à rua, apesar da lentidão, e por isso se sentaram em fila no poial de pedra.
Macário de perna levantada entre os portais, apoiando o pé sobre o tampo duma
cadeira. Palhetava fino e vibrado, requebrando a melodia como de soluços. Essa
e ainda essa, e ainda outra parecida à primeira. Tiago pensava, vendo a palheta
vibrar as cordas que o instrumento podia quebrar-se. Seguindo ele todos os
movimentos da mão. E experimentou uma inveja saudosa de um outro mundo, onde
ele próprio teria sido capaz de desferir a música sobre uma caixa de som. E estes
pensamentos eram tristes. Vinham no fio e na ponta daquele requebro, vibrante e
repicado, sem um som de canto. O bandolim do seu vizinho fazia-lhe representar mulheres
que nunca se queixavam, nem perdiam os dentes, e que no entanto amavam muito e
bem. Mulheres que morriam de pé e não se deixavam ver enterrar. Só para não
deixarem nos amantes a lembrança da desfiguração. Por isso teve de dizer com
licença. Macário parou, e Tiago disse. Um momento, homem, um momento. Muda de
estilo, que essa faz-me humedecer a vista. Ou será do calor que faz? Então Macário
concentrou-se sobre um último riso, fechou os olhos, iluminou os dentes e toda
a cavidade da boca e começou também a cantar. Com o balanço de todo o corpo. Que
por causa de uma cobrinha. Esmagada no terreiral. Toda a gente sua vizinha. Ai toda
a gente. Toda a gente sua vizinha. Se afogava em cagaçal. Nesse momento
chegavam as crianças atraídas pela música e pelo canto, em passo solene e chapéu
fora, e o cantor repetiu a quadra de perna no ar. No final da copla, fechou
completamente os olhos e juntou os dois pés. Levantou o bandolim no ar e disse.
Tudo. Tudo o que canto e toco me sai directamente desta. Apontando a cabeça com
o dedo.
- Compões bem, meu filho. Mas és perdido nesta terra.
Disse Manuel Gertrudes.”
Lídia Jorge, O
dia dos prodígios, D. Quixote, Lisboa, 2010
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