sexta-feira, 14 de junho de 2013

Pitágoras: um poema de João Rui de Sousa



I
a força  é como um boi enquanto os números
enquanto a vida corre e não a morte
enquanto é invenção sinal concreto
de iluminar os seres e os ligar

enquanto é substância de cimento
raiz nascer em águas ordenadas

enquanto é sol perfeito e crescimento

II

A noite é como um prego enquanto os números
enquanto a consciência já se abre
enquanto o sol se espelha            é um edifício
a caminhar na erva iluminada


a noite é como um prego enquanto segue
o esquadro e o compasso deste vício
de alinhar as cores mais desvairadas
ou de queimar perfis de diversão

a noite é como um prego enquanto o dia
ao calor da paz se ordena instala
a rectidão das coisas que nos guia
João Rui de Sousa,  Meditação em Samos, Ed. Galeria Panorama, 1970, 40-1
Comentário
Transcrevi este poema com o intuito de evidenciar a noção da criação poética nele presente. Trata-se de um trabalho exigente, um ofício órfico “alinhado a esquadro e a compasso” a partir de um impulso originário, animal, “uma força como um boi”.
Dois autores figuram na epígrafe da obra: Heráclito e Marco Aurélio. Para o primeiro, só o logos que escuta o ser, que se revela ao homem, torna possível ao homem viver na verdade. Para o segundo, esse mesmo logos torna o homem senhor da palavra justa, que torna possível a vida boa em comum com os outros.
A poesia abre assim o espaço onde se manifesta o fulgor do mundo e o ser humano encontra a sua paz, abertura ao outro, encontro, solidariedade. Por isso, a poesia torna-se uma busca ontológica ao serviço da realização moral do ser humano.
Tem assim pleno cabimento a opinião de Gastão Cruz (cf. Poesia Portuguesa Hoje, 1973, p. 371), que considera que a poesia de João Rui de Sousa se enraíza numa matriz clássica, sendo o poema ordenado e modelado a partir de uma exigência geométrica: de equilíbrio, harmonia, ordem, nitidez.
 A temporalidade da vida (“enquanto”) e a sua procura de significação é construída com o recurso a palavras que denotam a luta dos contrários (vida/morte; luz/escuridão; terra/fogo …), visando a dominância dos substantivos traduzir a atitude de despojamento essencial necessário a um existir regido pelo princípio de uma sabedoria, que a letra minúscula e ausência de pontuação do poema acentuam.
Ao trazer ao espaço público este excelente poeta, que, afora os meios académicos, se encontra votado ao limbo do esquecimento, pela “excessiva” atenção concedida a outros, procurei fazer-lhe justiça, modestamente. Oxalá outros partilhem também deste sentimento.



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